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Vida após (a) Vida

Não quero escrever sobre a morte. Os leitores recordarão o pai, a madrinha, o irmão, a mulher, a tia, o melhor amigo que morreu ou que se aproxima desse momento. Não quero escrever sobre a morte, mas, sim, sobre a vida.

Vida após (a) Vida
Inês Espada Vieira
15 de março de 2023

A vida dos indivíduos e a história das comunidades fazem-se dos dias de exceção, do que é extraordinário (fora da ordem), daquilo que não é banal nem faz parte da rotina. Na verdade, a vida e a história escrevem-se a partir de sobressaltos de júbilo ou de mágoa, provavelmente mais destes últimos.

Alexandre O’Neill bem o viu em Portugal: “Os povos felizes não têm história […]/ Mas nós não queremos ser um povo feliz.” O poeta que sabia que há palavras que nos beijam pegou nelas para escrever o poema-oração a pedir um absurdo: “Garanti-nos, meu Deus, um pequeno absurdo cada dia./ Um pequeno absurdo às vezes chega para salvar.” O’Neill faz a sua lista de absurdos, cada um de nós poderá ter a sua, o país certamente tem essas memórias: recordo, por exemplo, a guerra como absurdo lembrada em abril, no centenário da batalha de La Lys.

Os absurdos invocados pelo Poeta na sua prece são pedidos desprovidos de sentido: a doença, a traição, a morte, a fome, o desamparo, a solidão. Mas só aparentemente. É a dimensão salvífica do absurdo que nos desperta da letargia e rasga “a nossa embotada vontade”.

Nem sempre nos questionamos sobre o sentido dos dias, o sentido do caminho, das relações que mantemos, do emprego, do futuro. Questionar implica olhar, olhar implica parar. E não há tempo para perder tempo, principalmente quando essa pausa pode abrandar a engrenagem, pondo em risco a inércia do movimento para a frente. “Parar é morrer”, ouvimos e dizemos tantas vezes. E tantas vezes, também, só paramos perante a morte de alguém que amamos.

Recordo muitas vezes a voz da minha amiga Adriana, a quem a mãe morrera (que poderosa é a conjugação pronominal do verbo morrer!) com um cancro, contando-me – consolada – a breve conversa que tinha tido com o Pe. Tolentino Mendonça: “Adriana, não pergunte porque morreu a sua mãe. Pergunte antes por que viveu.” A mudança de ponto de vista é essencial para reescrever o nosso presente e a memória dos que partiram.

Não quero escrever sobre a morte. Os leitores recordarão o pai, a madrinha, o irmão, a mulher, a tia, o melhor amigo que morreu ou que se aproxima desse momento. Não quero escrever sobre a morte, mas, sim, sobre a vida.

Esta perspetiva sobre a morte é a que (me) proponho como perspetiva sobre a vida: saber porquê, conhecer a razão por que viveram aqueles a quem queremos, conhecer a razão da nossa própria vida. Querer saber dela antes do fim, “a tempo” de a viver com plenitude, todavia sem perder o valor de ensaio, de tentativa e de erro. Viver enquadrados pelo lema construído a partir da frase do romancista e dramaturgo irlandês Samuel Beckett: “Tenta. Fracassa. Não importa. Tenta de novo. Fracassa de novo. Fracassa melhor.”

Em cada tentativa e em cada fracasso, fazemos escolhas em que intervimos de modo mais ou menos ativo e consciente, conforme circunstâncias que nem sempre dominamos. De alguma maneira, conseguimos distinguir esses momentos-encruzilhada, porventura podemos imaginar uma sucessão infindável de ses a partir deles: e se tivéssemos escolhido outro curso, outro namorado, outro emprego, outro destino de férias, até um outro lugar de estacionamento….

Olhar para os momentos-encruzilhada é um exercício revelador de que o cinema, por exemplo, gosta (recordo o filme de 1998 com Gwyneth Paltrow, Instantes decisivos) e que a escritora britânica Kate Athkinson pôs em prática no belíssimo romance Vida após Vida (Relógio D’Água, 2014), adaptada ao ecrã numa série de 4 episódios (Vida após vida, 2022) que a RTP2 tem transmitido ao domingo à noite (termina este domingo 19 de março).

Pensar que cada momento é importante na construção de um sentido para a nossa vida dá-nos responsabilidade e quiçá também ajuda a valorizar a banalidade dos dias: a vista da minha janela, o elogio da chefe de turno, o cumprimento amável do funcionário do supermercado, o telefonema da neta que está em Erasmus, a gentileza do vizinho que segurou a porta, o riso desbragado da rapaziada no recreio, aquela nuvem, o cheiro do bolo pão-de-ló ainda no forno…

Uma hiperconsciência da inevitabilidade da morte pode levar-nos a um permanente estado de insatisfação e de questionamento que não é saudável ou profícuo. Porém, há uma questão que para os cristãos tudo muda: a morte não é o fim, não é o final, sobretudo não é a finalidade.

Essa certeza, essa confiança, essa verdade, opera em nós uma mudança concreta e real, e a vida, inspirada pela Vida, não é um absurdo nem precisa já dos absurdos da prece do Poeta.

É Vida após (a) Vida de Jesus.

Feliz caminho para a Páscoa!

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