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Vede como eles se amam

Os bastidores das epifanias que nos marcaram e nos fizeram voar e crescer na adolescência, são, frequentemente, povoadas por um ou vários professores que, para sempre ficaram, na nossa memória.

Vede como eles se amam
José Brás
30 de outubro de 2024

No outono da vida, olhamos muito mais vezes para trás e sentimos necessidade de revisitar as nossas memórias de juventude. Sobretudo aquelas que em determinadas circunstâncias e momentos, nos mudaram a mente, nos abririam horizontes, nos levaram a crer ou descrer, nos obrigaram a questionar o mundo e a vida.

Os bastidores das epifanias que nos marcaram e nos fizeram voar e crescer na adolescência, são, frequentemente, povoadas por um ou vários professores que, para sempre ficaram, na nossa memória.

Até ao 5º ano do Liceu (na altura dizia-se assim) eu fui um aluno medíocre, preguiceiro, pouco dado a comprometimentos e, muito menos, a deslumbramentos que fossem para além dos meus heróis da banda desenhada e do cinema e, talvez por isso, as únicas disciplinas que achava minimamente interessantes eram História e Desenho.

Recordo-me que em 1972, no início do 6º ano (hoje 11º), num dia frio e chuvoso de outubro, aguardávamos na sala, a chegada do professor de História, para a primeira aula do ano, ou melhor, aguardávamos que ele não chegasse para, ao segundo toque, corrermos imediatamente para o recreio para mais 50 minutos de folguedo.

Subitamente, escassos momentos antes do ansiado toque, um senhor, de estatura meã, cabelo encaracolado, cinquentão, entrou na sala. Vestia uma camisa de quadrados largos, à pescador, umas calças de bombazina bastante puídas e curtas que realçavam um par de sandálias envoltas em pés desnudados que, com o tempo que fazia, só de olhar, arrepiava.

Não trazia pasta nem livros. Apenas a caderneta escolar. À gritaria frenética e caótica de uma sala carregada de adolescentes, desiludidos e quase revoltados com a chegada a tempo do professor, ele não respondeu com autoritarismo e rispidez, não gritou, exigindo imediato silêncio, não ameaçou. Simplesmente, olhou para nós, lançando-nos um sorriso rasgado e luminoso que nos deixou completamente desorientados.

Chamava-se João Cardoso. Dr. João Cardoso. Era o novo professor de História e, lá para o meio do ano letivo, também de Filosofia, quanto substituiu a velha professora Edite, que, entretanto, se aposentara.

Rapidamente soubemos que o Dr. João Cardoso era padre, mas muito diferente do padre Delfim, de Religião e Moral do 5º ano, que, do alto do seu cabeção e fato preto, passava as aulas de dedo em riste lançando sobre os alunos o sortilégio cientificamente demonstrado – garantia ele! - que o onanismo provocava cegueira precoce.

As aulas do Dr. João Cardoso eram muito diferentes das aulas dos outros professores. Muitos mapas, muitos álbuns, projeção de diapositivos (uma avançada tecnologia audiovisual para a época) e excertos de filmes temáticos, muitas ilustrações, algumas delas lindíssimas, por ele, criteriosa e laboriosamente selecionadas nas coleções enciclopédicas da Academia das Ciências de Lisboa que tinha paredes meias com os logradouros do liceu. E quando o tempo estava de feição lá vínhamos, com a tralha às costas, ter aula no jardim ou nas escadarias da Igreja de Jesus, um verdadeiro anfiteatro romano a céu aberto, por ele improvisado.

Na Antiguidade Clássica, o Dr. João Cardoso falava-nos do chamado Cristianismo primitivo ou das primeiras comunidades cristãs, referidas no Novo Testamento, criadas, após a Ressurreição de Jesus Cristo, pelos apóstolos Pedro, Tiago e João e por gentios, entretanto, convertidos como Paulo de Tarso e o centurião Cornélio, comunidades estas que subsistiram mais de 300 anos.

Consideradas, inicialmente, como uma heresia do judaísmo, eram comunidades assentes, essencialmente, na força da fé e na imitação de Cristo, eram estruturas, inorgânicas (como agora se diz), clandestinas (a religião das catacumbas) às quais judeus e gentios aderiam, voluntariamente, seduzidos pela Fé, conquistados pela firmeza das convicções e das virtudes estoicas e, sobretudo, pela força do exemplo.

Essas comunidades primitivas, como se sabe, foram alvo de cruéis perseguições. Nero, Tito, Décio, Diocleciano, entre outros imperadores romanos, perseguiram cruelmente as comunidades cristãs. Milhares de cristãos foram lançados aos leões no circo romano. Os mártires do cristianismo, que por essa via, mais tarde, ganharam auréola de santidade, abraçavam-se fraternalmente e rezavam, antes de serem devorados pela feras, simplesmente porque se recusavam a adorar os deuses romanos e reconhecer a divindade do imperador.

E muitos, - cada vez mais! - cidadãos romanos, que assistiam a estes degradantes espetáculos, balbuciavam entre si, num misto de espanto, perturbação e encantamento: “Vede como eles se amam!”

Perseguidas por judeus e romanos, não obstante todos os riscos e imprecações, estas primitivas comunidades cristãs, convocadas e reunidas em igrejas, cresceram para lá de Jerusalém, espalhando-se por todo o Médio Oriente, pela Turquia, pela Grécia, por Roma, praticamente por toda a bacia do Mediterrâneo, até que o imperador Constantino, também ele convertido ao Cristianismo, lhes concedeu liberdade de culto no ano de 313, através do Édito de Milão e do Concilio de Niceia.

Pouco depois, em 380, o imperador Teodósio I, foi mais longe e decretou o Cristianismo religião oficial do Império Romano, através do Édito de Tessalónica, reconhecendo-o como religião oficial do Império. Este reconhecimento evoluiu, rapidamente, para a condenação do paganismo e de muitas outras crenças, e mais tarde, das heresias, punindo os hereges não só com a excomunhão como também com a perda de património e de direitos civis.

E, dizia-nos o Dr. João Cardoso no seu discurso bondoso e arrebatador:
- Coitado do imperador Teodósio, que, provavelmente, sem o desejar, deu início a novos tempos de ignomínia, de indignidade e de crueldade, por vezes indiscritível e inimaginável, que nunca mais se descravaram da História, até aos nossos dias.

As Inquisições que, do séc. XII ao séc. XVIII combateram e reprimiram os cismas as heresias, a apostasia, a blasfémia, a feitiçaria, os costumes e hábitos desviantes, o pensamento, as opiniões e as pessoas diferentes dos cânones fixados pela hierarquia da Igreja , são uma das provas dessa enormíssima tragédia.

Recordo-me do Dr. João Cardoso, que nos ensinava, sempre, uma História feita de factos e acontecimentos concretos, nos ter relatado com detalhe, numa das suas aulas, o Massacre de Lisboa de 1506, também conhecido por Matança da Páscoa, que teve início no dia 19 de abril e, continuou nos três dias seguintes, que coincidiam com a Semana Santa, em que uma multidão tresloucada, incitada por frades dominicanos, perseguiu e exterminou, a ferro e fogo, mais de 4000 judeus. Nenhum dos manuais de História que estudáramos até então, fazia a mais breve referência a este acontecimento que constituía e, provavelmente, ainda hoje, constitui, uma das páginas mais negras da História de Portugal, uma expressão paroxística da ignorância, da intolerância e da crueldade, humanas, unidas na louca prossecução de um desígnio ignominioso.

Falava-nos o Dr. João Cardoso, das Cruzadas, das Guerra Santas (como se uma guerra alguma vez pudesse ser santa – lamentava ele!) e da cristianização forçada dos povos gentios. Para espanto de muitos de nós que tínhamos inculcada na mente aquela visão heroica e unívoca da História e, muito particularmente, da História de Portugal, da expansão da Fé Cristã, através das Guerras Santas, e mais tarde, da redenção das almas perdidas dos povos gentios primitivos, através de uma missionarização forçada e levada a cabo em conluio e ao serviço de um poder temporal mais interessado na exploração das riquezas materiais dos novos territórios, na escravatura e, mais tarde, na domesticação dos povos indígenas do que na salvação das suas almas que viviam em paz e harmonia, quantas vezes em verdadeiros paraísos terrestres, muito mais próximas do Bem e de Deus do que a maioria dos intrusos cristianizadores.

Todas estes acontecimentos históricos e suas falsas versões “oficiais”, eram corajosamente desconstruídos – em 1972 - pelo Dr. João Cardoso que nos demonstrava que nada tinham a ver com os verdadeiros valores do Cristianismo, terminando as aulas, invariavelmente, em animadas discussões e debates que (pasme-se!) iam para além dos tempos letivos, ocupando os sagrados intervalos escolares.
Recordo-me de o Dr. João Cardoso dizer, em jeito de triste conclusão: quando uma qualquer religião se alia e quantas vezes se confunde com um qualquer poder temporal, o resultado é quase sempre mau, e quantas vezes, desastroso e explosivo. Quantas inomináveis atrocidades se fizeram ao longo da História, em nome de Deus para servir a avidez e crueldade dos homens?
*
Poucos anos mais tarde convivi com o Dr. João Cardoso num grupo católico e soube que ele não era padre. Era diácono. Nunca tinha conseguido ser ordenado por alegada instabilidade emocional e padecimentos do foro psicológico, para seu grande desgosto e da senhora sua mãe, uma adorável velhinha com quem ele vivia em Campo de Ourique e o esperava nas tardes amenas de primavera, à porta do liceu, para subirem, devagarinho, a calçada da Estrela a caminho de casa.

Perdi o contacto com o Dr. João Cardoso. Passaram-se e muitos anos e ele, há muito, certamente, partiu. Devo-lhe, enquanto católico, as minhas firmes convicções laicistas.

Um Estado moderno e democrático tem o dever de garantir os direitos fundamentais de todos e cada um e um desses direitos fundamentais é a liberdade religiosa dos cidadãos que deve ser escrupulosamente respeitada. E é bom, que em nome do futuro e da liberdade de todos, fiquemos por aqui.

Nem o Estado e os seus agentes se devem imiscuir, perseguir, hostilizar, utilizar, proteger, privilegiar ou promover qualquer religião, nem qualquer religião deve procurar quaisquer apoios, ajuda ou proteção indevida, no aparelho de Estado para lá do inalienável direito ao seu livre exercício.

Porque a osmose, a interação, a promiscuidade entre poder secular e poder religioso escreveu, ao longo de séculos, páginas de sangue, páginas de sofrimento, de violência e de repressão, por muito que alguns conspícuos académicos procurem, hodiernamente, negar a evidência, branqueando e minimizando os seus terríveis e deletérios resultados.

A explosiva e bárbara conjugação destes dois elementos vemo-la não só no passado como também no presente com as novas guerras santas, a jihad islâmica, os terrorismos de cariz fundamentalista, os atentados e os genocídios, na sua maioria, alimentados, material e ideologicamente, à escala global, por estados confessionais e religiosos, intolerantes e monolíticos.

De forma anacrónica, a História parece repetir, hoje, os mesmos pecados e erros do passado, cuja solução passa por algo, aparentemente, tão simples e singelo: a tolerância e a capacidade de aceitar e respeitar a diferença e a liberdade do outro. Como alguém, que hoje é santo, um dia disse: o Mundo começa a mudar no coração de cada um de nós.

A Igreja, hoje, só pode crescer e multiplicar-se com a Verdade, com a transparência e com a pedagogia da coerência e do exemplo, o mesmo exemplo de coragem e de firmes convicções que, há muitos séculos atrás, perturbava a consciência dos romanos levando-os a sussurrarem entre si: “Vede como eles se amam!”

Quando em setembro de 2024, o Papa FRANCISCO em visita pastoral à indonésia disse: “não imponham a vossa fé aos outros! não imponham as vossas convicções e pontos de vista aos outros!” lembrei-me do Dr. João Cardoso e do muito que com ele aprendi e cresci.

Lições e permanentes motivos de reflexão que ficaram para a vida.

Que Deus o tenha na morada dos Justos!

Mesa Redonda
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