UM HOMEM BOM
Álvaro Laborinho Lúcio, aceitando tranquilamente o seu destino, despedia-se, discretamente, deste mundo, aceitando, com admirável mansidão e arrepiante naturalidade, a fragilidade e finitude da sua natureza humana, pedindo desculpa – num ato de suprema e inaudita humildade – por partir!


José Braz
05 de novembro de 2025
Na segunda metade da década de 70, do século passado, iniciei a minha carreira profissional no Ministério da Justiça, integrando, em 1980, um curso de formação de agentes estagiários da Polícia Judiciária. Este curso de formação profissional teve lugar numa bucólica quinta dos arredores de Loures, adquirida, nesse ano, pelo Ministério da Justiça, à família de Luís de Sttau Monteiro, para ali ser instalada a Escola da Polícia Judiciária, o que, paulatinamente, viria a acontecer ao longo dos anos e até ao presente, estando ali instalado o Instituto de Polícia Judiciária e Ciências Criminais.
O curso começou logo após a aquisição da quinta do “Bom Sucesso”, assim ela se chamava e ainda se chama. Decorreu sobre o signo da improvisação e do desenrascanço. O picadeiro e a cavalariça transformaram-se em ginásio e balneário, um tanque agrícola foi transformado, entusiasticamente, pelos próprios alunos, em piscina, o salão nobre e várias dependências do solar foram adaptados a biblioteca, salas de estudo e salas de aula e nos sótãos foram instaladas camaratas. Enfim, dificuldades e obstáculos que jovens candidatos não só aceitaram, com grande otimismo e bonomia, como ajudaram a minimizar e até a ultrapassar com o seu próprio trabalho.
O primeiro diretor da Escola, foi um jovem magistrado de seu nome Álvaro José Brilhante Laborinho Lúcio, cuja liderança e presença eram evidentes. À sua superior inteligência, eloquência e lhaneza de trato, ninguém ficava indiferente.
Para mim, ávido de rumos e perspetivas que dessem sentido a uma carreira que desejava iniciar auspiciosamente, Laborinho Lúcio rapidamente se transformou numa referência que se consolidou nas inúmeras vezes que com ele contactei, ao longo do curso. Impressionavam-me não só o saber jurídico, como a vasta cultura, o humanismo e a visão holística do mundo, de um Homem que parecia viver na Renascença.
Os anos passaram.
Laborinho Lúcio percorreu a sua excelsa carreira de magistrado, de procurador da República a juiz conselheiro.
Sempre ligado à formação, para além de diretor da Escola de Polícia Judiciária, foi diretor e professor do Centro de Estudos Judiciários, cuja organização e modelo de atuação reformou profundamente. Foi professor na Universidade do Minho, onde presidiu ao Conselho Geral e onde lhe foi atribuído o título de Doutor honoris causa.
Laborinho Lúcio procurou fazer da Justiça um espaço de humanidade e de compromisso ético, ancorada nos valores da cidadania, afirmando que “a justiça só é plena quando se põe ao serviço de quem mais precisa dela: as crianças, os jovens, os vulneráveis” e integrando e inspirando instituições dedicadas à educação e proteção de crianças e jovens em perigo.
Na política, foi deputado da Nação, Ministro de Justiça e Ministro da República, nos Açores.
Entre outros cargos de natureza cultural, foi vogal do Conselho Diretivo da Fundação Centro Cultural de Belém.
Também eu percorri a minha carreira, assumindo múltiplas responsabilidades.
Quando nos encontrávamos, num ou noutro evento, numa ou outra cerimónia, falávamos, invariavelmente, de modelos de investigação criminal e tínhamos opções e pontos de vista muito concordantes, neste domínio, o que me transmitia conforto e redobrado ânimo na defesa e propalação das minhas propostas e soluções.
Após a sua jubilação, dedicou-se à criação literária, publicando excelentes romances onde o brilho da sua inteligência e erudição, a eloquência e elegância da sua palavra, aliadas a um peculiar sentido de humor, se ofereciam ao leitor sem presunção ou mesuras, falando da vida amarga e dos duros quotidianos dos mais pobres e vulneráveis.
Em outubro de 2011, tive a honra de ser coautor, consigo e com outro jurista, do livro “Levante-se o véu, editado pela Oficina do Livro, onde, mais uma vez, é manifesta a nossa concordância relativamente às soluções e modelos de investigação criminal mais adequados a cumprir, com eficácia o humanismo penal, num Estado de Direito democrático.
Sendo eu, presentemente, diretor editorial de uma revista jurídica, solicitei, em agosto, a Álvaro Laborinho Lúcio, que nos desse a honra de escrever um artigo para a edição deste ano.
Em 31 de agosto, dele recebi um e-mail, onde me dizia:
“Estimado Dr. José Braz,
Prezado Amigo
Agradeço muito o seu convite.
Escrevo hoje, a correr, apenas para lhe dizer que lhe responderei dentro de três a quatro dias.
Pode ser?
Peço desculpa por ser assim.
Gostei de o reencontrar aqui.
Com muita estima,
Álvaro LL”
Aguardei a resposta que chegou, prontamente, também por e-mail, no dia 3 de setembro, com o seguinte teor:
“Meu Estimado Amigo
Pedi-lhe que me deixasse responder ao seu convite, que muito agradeço, porque aguardava uma informação da qual dependeria tal resposta.
Em sequência de tal, acabo de enviar a todos os meus compromissos assumidos até ao final do ano, o email do seguinte teor:
«Exmos Senhores
Lamento muito, mas, por razões de natureza estritamente pessoal, de todo inultrapassáveis, vejo-me forçado a cancelar toda a minha agenda a partir de agora.
Não posso, por isso, honrar o compromisso que assumi para convosco.
Peço muita desculpa, lamentando também o transtorno que assim provoco.
Com muita estima,
Álvaro Laborinho Lúcio».
Não posso, por isso, corresponder ao seu convite como muito gostaria.
Peço que me desculpe e deixo os melhores votos para a revista, que lerei com todo o gosto.
Com muita estima,
Álvaro Laborinho Lúcio”
Triste, por não poder contar a colaboração de tão ilustre jurista e amigo, não deixando de estranhar o teor inusual do e-mail recebido, respeitei e conformei-me, naturalmente, como a decisão.
Quando soube do seu falecimento, no dia 23 de outubro de 2025 senti um arrepio de emoção e percebi o verdadeiro sentido das suas missivas.
Álvaro Laborinho Lúcio, aceitando tranquilamente o seu destino, despedia-se, discretamente, deste mundo, aceitando, com admirável mansidão e arrepiante naturalidade, a fragilidade e finitude da sua natureza humana, pedindo desculpa – num ato de suprema e inaudita humildade – por partir!
Desconheço as suas convicções religiosas, mas tenho a firme convicção que está hoje, sentado, junto de Deus, na glória dos Bons e dos Justos.



