Somos todos iguais, mas alguns mais iguais que os outros
Acolher a vivência entre diferentes possibilita ainda identificar as cegueiras veiculadas por uma visão única na concepção de padrões de vida socialmente construídos.
Aline Villas Boas
06 de abril de 2022
O Alto comissariado para Refugiados da ONU, ACNUR, informa que há 82,4 milhões de deslocados forçados em todo o mundo, em resultado de perseguições, conflitos armados, violência, violações dos Direitos Humanos ou de sérias perturbações da ordem pública(1). Destes, cerca de 26,4 milhões tem o status legal de refugiados e metade têm menos de 18 anos. Face a este desafio à União Europeia e Portugal, tem se demonstrado proatividade e investimento em ações efetivas de apoio à reconstrução da vida destes refugiados.
Mas o objetivo aqui não é expor dados e apresentar o excelente trabalho e dedicação das instituições portuguesas e a receptividade da população às vítimas das guerras atuais, mas sim trazer um ponto de reflexão que a muitos também deve ter aparecido nestes últimos tempos. Será que nós, oriundos de uma cultura ocidental, seremos capazes de reconhecer se fazemos alguma distinção na recepção, acolhimento e integração dos diferentes grupos de refugiados?
Compartilho um caso que me fez aprofundar tal reflexão, ocorrido em um dos vários grupos de apoio aos refugiados em que participo. Como devem imaginar, um dos primeiros passos a serem conquistados pelos que cá chegam é o domínio do português, que uma vez adquirido permite acesso a outras etapas da integração, nomeadamente a aquisição de um emprego e a consequente autonomia financeira. Face a esta dificuldade linguística para a integração dos refugiados, projetos sociais, escolas de línguas e mesmo voluntários se disponibilizam ao ensino do português. O problema é que as vagas gratuitas são em números e localidades restritas.
Com o advento da Internet e dos programas de ensino de línguas sem custo e da educação online parte desta questão foi resolvida. Contudo, entramos em um campo de discussão que merece aprofundamento próprio e me comprometo a fazê-lo brevemente, que é a importância da educação humana, de conexões e trocas de ideias entre colegas, educandos e educadores. E, especialmente, no caso da integração de pessoas com culturas diferentes, a partilha, o encontro e a atenção pessoal fazem toda diferença na aquisição de competências técnicas e sociais, como a linguística. O fato é que com a chegada dos vizinhos ucranianos as ofertas de aulas de português gratuitas se multiplicaram e em grande escala, com o destaque de que eram “para ucranianos”. E, no meio desta bela mobilização e esforços conjuntos, surge no grupo de voluntários uma mensagem com a seguinte observação, que partilho ipsis litris: “Não querendo ser inconveniente, mas estas ajudas todas com emprego e português podem ser também aproveitadas pelos refugiados afegãos que estamos a acolher e que já estão em Portugal em processo de integração?”
A resposta que primeiro me veio à cabeça foi “claro que sim, porque não seriam?”, mas logo percebi que não era assim tão claro. Estavam declarados naquela singela pergunta assuntos complexos e espinhosos, que há séculos rondam nossa sociedade como a relação intercultural, as desigualdades econômicas, sociais e culturais, o processo de aculturação, a discriminação, os direitos humanos com destaque aos direitos dos migrantes, dentre outros. No entanto, o tema que destaco e creio que podemos refletir e tentar melhor inserir no nosso cotidiano, é como lidar com a igualdade e a diferença destacando, principalmente, que o fato de vivermos em comunidade é, necessariamente, aceitarmos a convivência entre os diferentes.
Acredito que hoje não cabe mais à pluralidade da nossa realidade não considerar a fluidez e a dinamicidade dos atos e dos fatos. Como já mencionado, falar de diferenças é um exímio exercício de complexidade, já que aqui não se coloca em questão a binaridade de que assumir as diferenças significa renunciar à igualdade. Pelo contrário, defender a igualdade universal é uma pretensão ligada à Revolução Francesa de 1879 e seus ideários de liberdade, igualdade e fraternidade, e embasamento fulcral da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, tão presentes na nossa vida atualmente. Quer dizer, assumimos que somos universalmente iguais uma vez que somos humanos, mas devemos considerar nossa subjetividade, influências socioculturais, etnias, opções sexuais e de vida diferentes do que está ao nosso lado. Acolher a vivência entre diferentes possibilita ainda identificar as cegueiras veiculadas por uma visão única na concepção de padrões de vida socialmente construídos. Por mais que de tempos em tempos apareçam grupos que defendam uma sociedade culturalmente uniforme, ou que se não existem deveriam existir, é hoje muito clara a impossibilidade de constituição social formada por uma cultura, uma língua, uma religião ou uma identidade que caracterize toda sua população. Entretanto, a realidade atual é global e composta de grupos diversos na formação da comunidade e uma complexa rede de relações sociais entre si. A forma como essas relações constituem-se e o modelo de lidar com as diferenças na sua composição acabam por ser essenciais na constituição de uma sociedade intercultural.
A mesma estrutura que receberá pessoas oriundas de uma cultura geopoliticamente europeia, tradicionalmente cristã, alfabeticamente latina, majoritariamente caucasiana, será suficiente para acolher pessoas de uma cultura geopoliticamente oriental, tradicionalmente islâmica, alfabeticamente arábica e majoritariamente mestiço tipo semita, curiosa e possivelmente mais aparentado com a pessoa histórica de Jesus Cristo, o que significa bem diferente do padrão europeu? Nesse sentido, o que é de suma importância é colocar como ponto de equilíbrio e como fator fundamental de ligação entre nós é a humanidade.
O facto é que não há respostas simples para problemas complexos, e a partir dessa premissa, cabe-nos entender que a questão dos refugiados, dos que buscam asilo e das migrações, não são simples e demandam, além de ações de emergência, uma reflexão conjunta em nossa sociedade para primeiro entendermos o problema e, assim, agirmos de forma coerente, consubstanciada em propostas de ações coordenadas a curto e longo termo. A crise dos refugiados na Ucrânia apresenta à Europa não apenas uma importante oportunidade para demonstrar sua generosidade, valores humanitários e compromisso com o regime global de proteção aos refugiados. É também um momento crítico de reflexão: nós ocidentais, conseguiremos superar ideais pré-concebidas que potencialmente subjugam culturas diferentes de si e abraçar o espírito humano de igualdade da Convenção de Refugiados de 1951? Os refugiados não devem enfrentar discriminação baseada em raça, religião ou país de origem, de acordo com a Convenção das Nações Unidas para os Refugiados e em um mundo ideal, gostaríamos que todos fossem tratados igualmente.