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Quando o Sol e a Imperial Não Bastam para Acalmar a Alma

A interculturalidade é essencial para uma convivência harmoniosa. Vivemos num mundo globalizado, onde as fronteiras são cada vez mais ténues e a coexistência entre culturas diversas é inevitável.

Quando o Sol e a Imperial Não Bastam para Acalmar a Alma
Aline Villas Boas
07 de agosto de 2024

Era uma típica sexta-feira lisboeta, 17h30, quase 40 graus. O desejo era apenas um: uma imperial fresquinha numa esplanada, seguindo o sábio conselho d’Os Quatro e Meia: "Sabe-me tão bem sentar na esplanada, a olhar o mundo sem pensar em nada". E ali estava eu, a espreguiçar-me, a beber uma jola, a ver a garotada a jogar à bola numa relva aleatória. Um cenário idílico, não fosse a irrupção de um casal de uma nacionalidade não portuguesa, que aqui não interessa se é x, y ou z, que decidiu dar uma demonstração ao vivo de como não se deve comportar.

A bola, inevitavelmente, foi parar à esplanada. Mas em vez devolverem a bola e pedirem educadamente que jogassem com cuidadinho, o casal começou a ameaçar estourar a bola e dar uma coça aos miúdos se a bola voltasse a passar perto da sua mesa. Sim, nesses termos. Ora, onde é que já se viu? Eram adultos, num grupo de quase dez, a intimidar crianças de 8 a 12 anos. E a situação não ficou por aí. A bola lá chegou à mesa dos mal-educados e o senhor, qual personagem de um filme de ação de segunda categoria, pegou a bola, pô-la debaixo do braço e deu um soco de direita e um pontapé voador, que com sorte pegou o ar. É verdade que ninguém gosta de levar com uma bola de futebol enquanto relaxa, e o casal tinha certa razão em não querer receber chutes de bola. Mas nada, absolutamente nada, justifica a violência, ainda mais contra crianças. Confesso que a minha vontade foi levantar-me, segurá-lo pelo colarinho e dar-lhe uma aula de direitos humanos e defesa das crianças. Mas mantive-me sentada, na esperança de que o bom senso prevalecesse. O esperado é o respeito de um pelo outro, do casal pelas crianças, mas também das crianças pelo casal, e todos os outros que ali estavam.

As crianças, compreensivelmente assustadas, foram chamar os pais. Estes, diferentemente do casal, foram incisivos, mas educados. Recuperaram a bola dos filhos e recusaram-se a entrar numa espiral de violência verbal ou física. Foi neste momento que a esplanada e eu nos levantámos e aplaudimos estes pais. Contudo, o casal não se ficou e continuou a gritar: "Se os vossos pais não vos dão educação, venham cá que eu dou". Um triste espetáculo, sem dúvida.

Este episódio lamentável ilustra um problema profundo: o desserviço que atitudes como estas fazem à interculturalidade e à mediação entre culturas distintas. Em primeiro lugar, ao agirem de forma tão grosseira e agressiva, estes indivíduos criam uma imagem negativa da sua nacionalidade. Todos sabemos que uma andorinha não faz a primavera, mas uma má ação pode facilmente manchar a reputação de toda uma comunidade. É um rótulo de falta de civilidade e educação que, não só impactou as crianças e os seus pais, mas também todos os presentes na esplanada. Será que não percebem que isso pode ter um efeito exponencial aos seus compatriotas na busca de um emprego, de uma casa para arrendar ou mesmo na rua?
No meu ver, mais grave ainda, este comportamento pode deixar marcas nas crianças que o testemunharam. A raiva e o ressentimento gerados por quase levarem murros e pontapés podem transformar-se em preconceito contra outras crianças imigrantes na escola, no clube ou no bairro. É um ciclo de hostilidade que se perpetua e que mina todo o esforço monumental feito por educadores, serviço social, ONGs, diplomatas e políticas públicas de inclusão.

A interculturalidade é essencial para uma convivência harmoniosa. Vivemos num mundo globalizado, onde as fronteiras são cada vez mais ténues e a coexistência entre culturas diversas é inevitável. Cabe a cada um de nós, imigrantes ou não, contribuir para que esta convivência seja pacífica e enriquecedora. Atitudes como as deste casal são um retrocesso e uma afronta a todos os que trabalham arduamente para promover o respeito e a integração.

Por isso, peço desculpa às crianças, aos pais e a todos os presentes nesta situação ou em outras parecidas, pela falta de sensibilidade de alguns adultos que ainda não perceberam que os seus atos têm consequências públicas. A educação e o respeito são valores universais que todos devemos cultivar, independentemente da nossa origem. Afinal, estamos todos juntos a construir o futuro do sítio onde nascemos ou que escolhemos para viver.

Vamos brindar com uma imperial e lembrar-nos que o sol e a esplanada são para todos. E que, com um pouco mais de empatia e compreensão, podemos transformar estes momentos em memórias felizes, e não em episódios de vergonha. Saúde!

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