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Pássaros

Houve, porém, um momento que talvez tenha marcado indelevelmente o lugar ocupado pelos livros na minha vida.*

Pássaros
Helena Rafael
13 de novembro de 2024

Numa conversa recente sobre literatura perguntavam-me, a certa altura, se conseguia identificar o momento em que pressentira a importância que os livros assumiriam na minha vida.

Tendo nascido numa casa com divisões rodeadas de estantes, é difícil reconhecer a ocasião em que esse instante decisivo aconteceu. Os livros foram desde muito cedo coabitantes omnipresentes. Testemunhas e portas para as respostas às primeiras grandes inquietações da infância e da adolescência estando sempre por perto num aparente caos sem organização etária ou de género.

Uma biblioteca emocional que respondeu a diferentes momentos familiares e que foi, com a passagem do tempo, adquirindo uma identidade muito particular - os tumultos políticos da ditadura, as grandes interrogações filosóficas do início da idade adulta, a luta política na defesa do bem comum, os primeiros sobressaltos amorosos, a descoberta dos gostos pessoais, o fascínio por outros lugares materializado nos Atlas do Mundo, a História, a Arte e a Ciência como lentes para a compreensão do universo. Frequentar as estantes que me rodeavam foi também, por isso, o cruzamento entre a genealogia familiar e o conhecimento da história do século XX.

Houve, porém, um momento que talvez tenha marcado indelevelmente o lugar ocupado pelos livros na minha vida.

Imediatamente abaixo do gira discos de vinil, inalcançável para a minha então altura infantil, estendia-se uma categoria demarcada de livros onde conviviam obras de Herberto Helder, Camões, Antero de Quental, Afonso Lopes Vieira, Ruy Belo, Carlos de Oliveira, José Carlos Ary dos Santos, José Gomes Ferreira, Federico García Lorca...

Livros que abria sistematicamente na tentativa de compreender a economia dos textos, a sonoridade da métrica, o sentido que percorria os versos. Incursões certamente prematuras e quase obsessivas que permitiram, contudo, que jamais abandonasse a leitura de poesia.

No final dos anos 70 ao som do êxito musical da época, a «Balada para los Poetas Andaluces de Hoy» (baseada num texto do poeta Rafael Alberti) interpretado pelo grupo espanhol Aguaviva, compreenderia talvez, pela primeira vez, um poema:

Nunca encontrei um pássaro morto na floresta.
Em vão andei toda a manhã
a procurar entre as árvores
um cadáver pequenino
que desse o sangue às flores
e as asas às folhas secas…
Os pássaros quando morrem
caem no céu.(1)

Um pequeno texto da autoria José Gomes Ferreira que ainda hoje sei de cor.

(1) In Poeta Militante I, Moraes Editores, 1977
* Texto inicialmente publicado em: https://www.jornaldeleiria.pt/opiniao/passaros
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