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O que a língua é para mim

Ligamos muitas vezes uma língua ao poder e oportunidades, mas não à sua cultura, história e unicidade

O que a língua é para mim
Cho Ian Lei
04 de janeiro de 2024

Foi numa conversa de lanche com um amigo.
- “Então, o que é que se faz no curso de Linguística?” Ele fez-me uma pergunta que muitos conhecidos meus já me fizeram, sendo um curso um bocadinho “longe” da vida de muitas pessoas.
Tentei explicar com palavras mais simples possível, adicionando, com entusiasmo:
- “Tenho um seminário sobre as variedades de português e os crioulos de base portuguesa em África e na Ásia. Na parte de Ásia, o professor ainda vai falar de patuá[1]! Já não consigo esperar mais!”
- “Mas será que ainda vale a pena prestarmos atenção a essa língua? Quase ninguém a fala.” Disse com um tom incerto.

Não fiquei irritada porque entendi que o meu amigo não fez essa pergunta com desprezo nem com ofensa, apenas por ser realista. No entanto, queria refutar, mesmo, por esta língua ser uma das poucas caraterísticas que distingue Macau das suas cidades vizinhas, também pelo contributo dela à diversidade do mundo. Infelizmente, no momento só tinha a cabeça branca e não lhe respondi.

A procura de uma resposta convincente não acaba com o termo daquela conversa. Um dia, uma amiga minha partilhou no Instagram a publicação de um ensaio dela pelo Jornal Son Pou, em que relatou umas experiências e as respetivas reflexões nos primeiros meses da sua chegada a Portugal. Foi num dos episódios que encontrei uma resposta impressionante e inspiradora para a pergunta em que andava a pensar.

Durante um intervalo, um colega cabo-verdiano dela falou da coexistência de várias línguas no país. O português é a língua oficial, sendo utilizado em escolas, serviços e entidades públicos bem como nos meios de comunicação social. Contudo, normalmente, as pessoas de ilhas diferentes (o país consiste em nove ilhas habitadas e uma inabitada) têm como língua materna variedades distintas do crioulo cabo-verdiano, que podem não ser inteligíveis uma a outra. Portanto, os falantes de variedades diferentes do crioulo recorrem ao português para se comunicarem. O colega adicionou que, dado que o governo cabo-verdiano está a reforçar o ensino de português, há agora crianças que não saibam falar o crioulo. Esta discussão sobre a “competição” entre as línguas indígenas e o português estendeu-se à aula, em que a minha amiga contou à turma a situação semelhante na China, cada vez menos falantes do dialeto da própria terra por causa do ensino de mandarim (norma da língua chinesa) bem promovido pelo governo.

- “Então, qual é a chave para manter uma língua viva?” Perguntou ela ao professor.
- “Só quando nós aprendemos uma língua não (apenas) pelo motivo de comunicação, podemos mantê-la viva. Ou seja, aprendo uma língua por causa das suas pronúncia, tom, palavras especiais e cultura. Se nós considerarmos línguas apenas como um instrumento para comunicar quando as aprendemos, então talvez só valha a pena aprendermos inglês.” Respondeu o professor.

É isso mesmo. A utilidade não deve ser o único motivo, seja para aprender uma língua, seja para preservar uma língua. Cada língua tem o seu valor e o que a valoriza é a sua história, a cultura, é também a sensação de pertença que ela traz aos seus falantes, pois tem sempre algumas expressões e piadas que perdem o sentido se forem explicadas noutras línguas (mas isto não significa que podemos discriminar ou excluir pessoas com a desculpa de “tu não falas a minha língua”!).

Vivia e vivo em três lugares onde prevalecem diferentes línguas. Nasci em Shiqi, um subdistrict (semelhante à divisão de freguesia em Portugal) na cidade de Zhongshan, situada, como Macau e Hong Kong, na Delta do Rio das Pérolas. Tenho o dialeto de Shiqi (muito parecido ao cantonês) como a língua materna. Falava-o com a minha família, com os professores e colegas da mesma terra no tempo fora de aula na escola primária apesar de tudo ser ensinado em mandarim, e noutros contextos de vida. Aos 11 anos mudei para Macau, onde o cantonês prevalece. Não deixei de falar com os meus pais neste dialeto em casa. Fora de casa o cantonês tornou-se a minha língua principal de comunicação e acompanhava-me passar um tempo inesquecível na escola secundária. E agora, no meu quinto ano em Lisboa com o português, já ultrapassei aquela etapa em que tinha de ensaiar a conjugação de verbos e a organização de frases na cabeça antes de saírem da minha boca. O português já é muito mais que uma língua que aprendo para arranjar um emprego e para me integrar na vida aqui, mas é, como a minha língua materna e o cantonês, uma parte da minha identidade, da minha vida. Adoro esta três línguas porque representam tradições e culturas que me enriquecem, etapas diferentes da minha vida, experiências e pessoas indispensáveis. Por isso, para mim, o que ainda valoriza mais uma língua é as histórias do seu falante, especialmente para quem domine várias línguas.

Ainda não conheci um falante de patuá (mas gostaria mesmo!), por isso, não sei que sentido faz esta língua para ele e para a comunidade macaense. Talvez seja um momento feliz com a família, talvez um prato macaense saboroso que só se pode comer em casa, ou talvez a experiência única de crescer ao mesmo tempo com tradições portuguesas e chinesas. A extinção desta língua pode significar o esquecimento, pela sociedade, de uma cultura única e uma história única de Macau.

Acredito que a situação de patuá não é um caso único. Muitas línguas minoritárias, até algumas não minoritárias mas não selecionadas como norma-padrão (por exemplo, cantonês na China) estão a sofre uma descida significativa de falantes ou até aproximar-se à extinção perante a valorização e promoção reforçada de normas porque ligamos muitas vezes uma língua ao poder e oportunidades, mas não à sua cultura, história e unicidade. Gostaria que inspirasse os pais, os avós, as gerações mais velhas de qualquer variedade linguística a comunicar com as novas gerações em línguas indígenas, a ensinar o que verdadeiramente valoriza uma língua para que contribuamos em juntos à preservação de diversidade do mundo, de beleza do mundo.

[1] Um crioulo extinto de base portuguesa usado pela comunidade macaense em Macau. De acordo com o Atlas of endangered languages de 2011 publicado pelo UNESCO, tem apenas 50 falantes de patuá.
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