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O oposto do amor é a indiferença

Como jovem, no contexto destas crises e conflitos complicados e interligados, é difícil responder se tenho motivos para ser otimista.

O oposto do amor é a indiferença
Cho Ian Lei
12 de julho de 2023

Parece que agora estamos numa época pior, em termos da humanidade, que a de 84 anos atrás. No Dia Mundial do Refugiado de 2014, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) apresentou o relatório anual Global Trends, declarando que, até ao fim de 2013, houve 51.2 milhões de pessoas deslocadas por causa dos conflitos, persecuções, violências generalizadas e/ou violações dos direitos humanos. O que se destacou foi que o número das pessoas deslocadas ultrapassou, pela primeira vez após a Segunda Guerra Mundial, 50 milhões. O Relatório de 2022, no contexto da invasão russa da Ucrânia e da retoma do poder pelos talibãs no Afeganistão, revelou que o número atingiu 108.4 milhões, entre os quais 52 por cento provêm da Síria, Ucrânia e Afeganistão.

Tive a oportunidade de ouvir as experiências partilhadas por quatro estudantes refugiadas numa aula aberta intitulada “From borders to classrooms”. Contaram experiências chocantes que talvez pessoas como eu, que por sorte nasci e cresci num sítio sem me preocupar se no próximo segundo um míssil chegaria à minha casa, se um dia perderia a oportunidade de estudar numa universidade, se amanhã teria um lugar para dormir, não conseguem imaginar. Uma delas até parou de falar na parte final da aula porque soluçou muito quando estava a recordar-se das misérias.

“Sabes, às vezes sentes-te miserável e queres negar aquela sensação. Mas, de repente, descobriste que já não podes negá-la mais”, contou-me uma das meninas refugiadas, depois da aula, numa conversa mais profunda sobre a sua vivência migratória antes de chegar a Portugal. É uma iraniana que tinha estudado Medicina Dentária na Ucrânia.

Na véspera da guerra, estava no quinto ano dos estudos e tinha uma vida satisfatória. Tudo isto acabou quando o primeiro míssil caiu em Donbass na madrugada do dia 24 de fevereiro de 2022. No início, obteve uma proteção de seis meses em Hamburgo na Alemanha, onde infelizmente não conseguiu arranjar uma universidade que a aceitasse. Ansiosa por continuar os estudos, decidiu correr o risco de a proteção ser suspensa, partindo para França e acabando por confirmar uma proteção em Portugal e uma oportunidade de se candidatar a um programa de bolsas para refugiados. Após ser registada em Portugal, teve de ir outra vez a Hamburgo para buscar o resto dos pertences. Quando o comboio estava a passar a fronteira entre Espanha e França, embarcaram uns oficiais que lhe pediram identificação. Apresentou o título de residência da Ucrânia, o passaporte do Irão, o documento que certificava a proteção da Alemanha. Os oficiais não admitiram nenhum deles e rejeitaram comunicar com ela em inglês, apesar de perceberem inglês. Cheia de desilusão e ansiedade, mostrou lhes o bilhete de autocarro de Paris para Hamburgo que tinha comprado por um preço acessível, explicando que não iria ficar em França. Felizmente, deixaram-na passar e agora está a tirar o curso de Medicina Dentária na Católica em Viseu.

Ainda me lembro da sua voz trémula quando estava a contar todas essas experiências. Com este número gigante de pessoas deslocadas, acredito que a sua história não é um caso particular, mas uma das centenas, mil e milhões. Sem dúvida, os conflitos, guerras e violências são horribilíssimos, e o que ajuda a piorar esses terrores é, talvez, a indiferença.

Elie Wiesel, escritor romeno de origem judaica, escreveu no seu livro Canção de embalar de Auschwitz: "O oposto do amor não é o ódio, é a indiferença. O oposto da beleza não é a fealdade, é a indiferença. O oposto da fé não é a heresia, é a indiferença. E o oposto da vida não é a morte, mas sim a indiferença entre a vida e a morte". É a indiferença perante as misérias que me faz questionar se a humanidade está a retroceder. O facto é que o episódio supramencionado não foi a única vez que a menina iraniana encontrou funcionários obstrutivos perante urgências humanitárias e ninguém vai negar que ela não é a única que sofreu isso.

Como jovem, no contexto destas crises e conflitos complicados e interligados, é difícil responder se tenho motivos para ser otimista. Consigo ver esforço e bondade, seja de umas organizações, seja de uma parte da população civil, dedicados a ajudar quem tem necessidade. No entanto, ao mesmo tempo, notei também, nos serviços públicos e/ou numas autoridades locais, a falta de simpatia, a falta do “espírito de Aristides de Sousa Mendes”, o cônsul português em Bordéus durante a Segunda Guerra Mundial, que desobedeceu a ordem do então ditador e emitiu indiscriminadamente vistos para quem precisava de fugir da invasão nazi de França para Portugal.

Vivemos, pelo menos no Ocidente, numa sociedade democrática. Assim sendo, talvez hoje já seja um bocadinho mais fácil que na altura de Aristides de Sousa Mendes, pois não se precisa de coragem contra um ditador, apenas coragem e simpatia para fazer tudo que seja humanitário.

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