O equívoco
Saía pouco antes das portas se fecharem e descia a rua como se não tivesse um lugar aonde regressar.
Helena Rafael
22 de março de 2023
e·quí·vo·co (latim aequivocus)
substantivo masculino
1. Interpretação errada de algo.
2. Engano não propositado.
3. Mal-entendido.
adjectivo
1. Que parece não estar empregado no sentido
que aparenta. = duvidoso
2. Suspeito.
3 . De que se deve desconfiar.
4. Ambíguo.
"equivoco", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
Entrava todos os dias na igreja do bairro.
Sentava-se na última fila de bancos
junto ao canto mais anónimo e não
rezava. Ficava por muito tempo a olhar
para o tecto austero que lembrava um céu ateu.
Saía pouco antes das portas se fecharem e
descia a rua como se não tivesse um lugar
aonde regressar.
Abordei-a num desses dias à saída da igreja. A
palidez ainda mais acentuada da pele parecia
naquele fim de tarde denunciar mal-estar ou
mesmo doença, levando-me a perguntar-lhe se
precisava de ajuda.
Respondeu num tom quase imperceptível que
nada de mais se passava. Tinha perdido a voz e
a vontade de falar há alguns anos e desde
então a igreja era o único lugar onde não
necessitava de explicar a origem do seu
silêncio.
Aquele voltara a ser, contudo, depois de muito
tempo, um dia de novos regressos. Depois de
dez anos sem falar, a voz ouvia-se novamente
e a vontade de dizer retornara com ela.
Tinha abandonado inesperadamente o
mutismo, a defesa da metáfora e voltara a
conjugar na primeira pessoa do singular e,
desde então, não parava de tremer e de se
reencontrar com a memória de maus passados.
Com os olhos muito abertos e quase líquidos
confessou-me que era uma pessoa perigosa e
que já atentara muito e muitas vezes contra si e
que poder voltar a falar carregava em si mesmo
uma renovada ameaça. Pareceu-me muito só e
à beira de um estranho precipício. Mas insistiu
em prosseguir a descida da rua para o tal lugar
ao qual parecia não ter onde regressar.
Reencontrei-a muito tempo depois mais
magra e um pouco mais envelhecida. Esteve
muitos meses sem entrar na igreja.
Durante esse tempo não voltou a deixar de
falar mas ganhara experiência em equívocos.
Perguntou-me então, ao reconhecer-me e sem
dirigir o olhar para o tecto que lembrava um
céu ateu, se podia ensiná-la a rezar.