Novas configurações do ateísmo
Ao desenvolver os conceitos de ateísmo, agnosticismo e crença, deparei-me com uma “nova categoria” de ateísmo, a qual permitam-me designar por ateísmo religioso-praticante. Esta não pretende expressar um rito ou ritual ateísta, mas um ateísmo com prática religiosa regular e envolvimento na comunidade paroquial.
Ricardo Cunha
02 de fevereiro de 2022
As eleições legislativas que decorreram no passado domingo trouxeram algumas expressões que fizeram furor nos meios de comunicação e redes sociais. Exemplo disso foi a afirmação de Rui Rio de que é católico, mas não crente. Não querendo de todo particularizar em Rui Rio esta crónica, a verdade é que rapidamente surgiram diferentes comentários sobre esta afirmação que nos parece, à partida, não fazer muito sentido, o que suscita a nossa curiosidade e reflexão sobre o tema.
Quando se fala em ateísmo, surgem duas distinções fundamentais, embora não exclusivas: o ateísmo teórico e o ateísmo pratico. O ateísmo teórico refere-se essencialmente à negação categórica da existência de Deus. Por seu lado, o ateísmo prático refere-se à vida sem qualquer referência ao Transcendente. A existência de Deus não é negada, mas a vida decorre como se Deus não existisse. A título de exemplo, desafio o leitor a refletir sobre quantos católicos que se autointitulam como não praticantes não poderíamos incluir na categoria de ateísmo prático?
Retomando o problema inicial da nossa reflexão, parece que a expressão de Rui Rio, como católico não crente, não se enquadra nestas categorias mais comuns de ateísmo. Não é um ateísmo exclusivamente teórico, dado que se afirma como católico, nem puramente prático, dado que afirma categoricamente o seu ateísmo.
Uma coisa é certa, facilmente percebermos que Rui Rio se afirma como ateu. No entanto, é ainda necessário perceber porque afirma Rui Rio ser católico. A expressão deixa transparecer que a sua mundividência é profundamente marcada pelo cristianismo, certamente fruto de uma reprodução social e da constituição de modelos normativos com forte influência de uma cultura católica. Os estudos de Alfredo Teixeira, sociólogo e investigador da Universidade Católica Portuguesa, expressam o “peso de uma socialização primária católica na população portuguesa e apontam para a manutenção de um catolicismo cultural no longo curso das identidades - não pode falar-se, neste sentido, de uma ‘exculturação’ do catolicismo”. Ser católico não-crente, pode assim exprimir esta inculturação cristã permeada pela família e ambiente social em que cresceu, que imbui o indivíduo neste sistema de valores e representações coletivas. Expressão deste posicionamento são os inúmeros ateus que celebram o Natal, sem celebrar o nascimento de Jesus, o menino-Deus.
Gostaria ainda de partilhar uma outra modalidade de ateísmo com a qual me tenho deparado junto dos meus alunos do 9ºano de escolaridade, ao desenvolver a unidade letiva de EMRC “Deus, o grande mistério”. Ao desenvolver os conceitos de ateísmo, agnosticismo e crença, deparei-me com uma “nova categoria” de ateísmo, a qual permitam-me designar por ateísmo religioso-praticante. Esta não pretende expressar um rito ou ritual ateísta, mas um ateísmo com prática religiosa regular e envolvimento na comunidade paroquial. Em termos práticos, estamos perante jovens que se afirmam categoricamente como ateus, mas vão semanalmente à Eucaristia, rezam e participam nos grupos paroquiais, ou seja, pertencem sem acreditar. A expressão que utilizam é “Eu vou lá, mas não acredito em nada daquilo”. Este ateísmo religioso-praticante é também expressão do peso da socialização primária católica, por iniciativa da família. No entanto, ao contrário do perentório desafio de Jesus a Pedro e André “Sigam-me, e eu os farei pescadores de homens”, a proposta de Jesus parece não convencer. As crianças, adolescentes e jovens passam anos consecutivos na catequese e grupos paroquiais, mas o Evangelho não impregna a sua vida, tornando-se, por isso, dispensável ou um apêndice. Distinga-se este ateísmo dos crentes sem religião, que em oposição ao pertencer sem crer, posicionam-se no crer sem pertencer, já que afirmam crer num determinado horizonte de transcendência, mas não se enquadram em nenhuma prática religiosa institucionalizada.
Estas novas configurações do ateísmo trazem novas variáveis à demografia religiosa, já por si bastante complexa nesta era pós-secular. A individualização do religioso em função dos gostos, interesses e curiosidades parece assaltar o mundo ateísta, na procura de um posicionamento pessoal que rejeita modelos “pronto a vestir”. Este parece ser o modo de habitar de hoje, num mundo onde os algoritmos procuram apresentar feeds de acordo com o perfil do utilizador.
Como interpelação, pense o leitor nas implicações que estas novas configurações ateístas trazem à estruturação de uma memória coletiva e ao acesso ao património espiritual e artístico de que somos herdeiros.