Gestação de Substituição – ética, moral, amor e compaixão
Ninguém ficou indiferente àquele apelo de vida, mas a expressão “barrigas de aluguer” e o seu significado, não era admissível. Só havia duas alternativas: ignorar o sofrimento daquela mulher com a sua doença e de tantas outras em circunstâncias idênticas, ou encontrar uma solução que respeitasse os direitos de todos e fosse balizada por princípios constitucionais e de adequação ética. A decisão foi unânime: ignorar não era solução.
Carla Rodrigues
05 de janeiro de 2022
Em 2011 chegou às mãos de alguns deputados da Assembleia da República, uma carta pungente de uma mulher que desejava profundamente ter um filho, mas não o conseguia gerar porque não tinha útero.
Ninguém ficou indiferente àquele apelo de vida, mas a expressão “barrigas de aluguer” e o seu significado, não era admissível. Só havia duas alternativas: ignorar o sofrimento daquela mulher com a sua doença e de tantas outras em circunstâncias idênticas, ou encontrar uma solução que respeitasse os direitos de todos e fosse balizada por princípios constitucionais e de adequação ética. A decisão foi unânime: ignorar não era solução.
A resposta para a infertilidade destas mulheres, teria de passar necessariamente por uma gestação no útero de outra mulher. O transplante de útero, embora já experimentado com sucesso, está longe de ser uma realidade acessível a estas mulheres. Não existiam impedimentos técnicos ou científicos, porque as técnicas a aplicar nestes casos, são técnicas normais de procriação medicamente assistida (fertilização in vitro e transferência de embrião). Os impedimentos eram de natureza legal, ética e moral.
Seguiram-se anos de trabalho, com dezenas de reuniões, audições, discussões políticas, ruturas, avanços e recuos, fiscalização de constitucionalidade, revisão da lei e volvidos 10 anos parece que os impedimentos de natureza legal e constitucional estarão definitivamente ultrapassados e a gestação de substituição será uma realidade em Portugal neste novo ano que se inicia, pois a lei acaba de ser promulgada e publicada.
Mas as objeções de natureza ética e moral? Foram ultrapassadas?
Houve um evidente esforço do legislador para acomodar na lei essas preocupações e atenuar as objeções. Por isso foi criada uma solução completamente distinta das “barrigas de aluguer” que existem noutros quadrantes do globo. Só em circunstâncias absolutamente excecionais será possível o recurso a esta técnica em Portugal, que assenta em três princípios basilares: gratuitidade do contrato, existência de doença, sujeição de todo o processo a uma rigorosa supervisão pela autoridade competente (Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida).
O contrato pressupõe que uma mulher se disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto, renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade, não podendo receber em troca qualquer retribuição ou pagamento em dinheiro ou em espécie. A vida humana não é comercializável.
Só poderá ser aplicada esta técnica em caso de doença devidamente comprovada como ausência de útero, lesão ou doença grave deste órgão que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez da mulher. A gestação de substituição é um tratamento médico para uma doença.
A celebração de negócios jurídicos de gestação de substituição carece de autorização prévia do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida e todo o processo terá de ser supervisionado por esta entidade, antecedido de audição da Ordem dos Médicos e da Ordem do Psicólogos. Há um rigoroso processo de acompanhamento de cada caso.
Há outra circunstância relevante que, não sendo basilar, é fundamental no espartilho da lei: só casais poderão recorrer a esta solução. Casais heterossexuais ou casais de mulheres em que ambas padeçam de doença que caia na previsão legal.
Com estes princípios basilares, a solução portuguesa nunca poderá ser apelidada de “barrigas de aluguer” e está balizada por requisitos que a constituem como um tratamento para uma doença grave, dentro de um rigoroso processo de aprovação e supervisão por uma entidade reguladora.
Mas continua a ser perturbadora esta solução e prevalecem questões legítimas, cuja demanda por resposta, dificilmente sossegará os espíritos mais inquietos.
A questão do respeito pela chamada “ecologia humana” em que a pessoa possui uma natureza, que deve respeitar e não pode manipular como lhe apetece.
A questão da instrumentalização ou exploração do corpo da mulher gestante.
A questão da sacralização do parto em detrimento do projeto parental pré-estabelecido.
A questão da discriminação da figura paterna, desvalorizada e secundarizada nesta relação, como se a criança só tivesse mãe de intenção e mãe de substituição.
A questão do interesse superior da criança e do impacto do afastamento da mulher que a gerou.
A questão da sobrevalorização da genética ou da prevalência da biologia.
A questão da essência da maternidade: mãe é aquela que gera? Ou aquela que dá o óvulo e toda a informação genética? Ou aquela que ama, que cria, que protege, que educa?
Estas e outras questões legítimas, fraturam o consenso e perturbam a aceitação da solução proposta.
A verdade é que estas mulheres sem útero, ou com lesão ou doença grave deste órgão que as impede de ter uma gravidez, são as únicas mulheres que não têm direito a um tratamento para a sua doença de infertilidade.
A verdade é que são legítimos os anseios destes casais que querem ser pais e mães e têm direito a constituir a sua família.
A verdade é que a medicina e a ciência oferecem uma solução possível e o legislador encontrou uma formulação que respeita os direitos de todos, casal, gestante e criança.
Talvez a resposta decisiva esteja noutra pergunta: poderá o amor prevalecer?
O amor destes pais e destas mães que desejam e amam profundamente o seu filho antes da sua concepção. O amor de uma mulher que se dispõe a carregar no seu ventre um filho que não é seu, num gesto de profunda generosidade e doação para com outra mulher. O amor dum casal que se entrega para lá do nosso entendimento, na busca da felicidade.
Eu era deputada em 2011 e recebi essa carta, esse apelo de vida e agi, impelida pela compaixão.
A ética e a moral são uma força absoluta.
O amor e a compaixão também.