As fronteiras invisíveis da pobreza
No fundo, falar de pobreza é falar de fronteiras, algumas feitas de tijolo, outras feitas de preconceito. Fronteiras que, embora invisíveis, moldam vidas e delimitam possibilidades.


Dinis Marques
06 de maio de 2025
Não é necessário atravessar oceanos ou postos de fronteira para sentir que se chegou ao fim do mundo. Em muitas cidades, é possível habitar cenários completamente distintos. Às vezes, basta atravessar uma rua. A pobreza desenha uma linha cruel entre realidades que partilham o mesmo espaço, mas não a mesma rotina. Invisível no mapa, mas visível na pele, no corpo e na vida de quem está preso do lado de fora do que chamamos de “normalidade”. Como se cruza uma fronteira que ninguém vê, mas todos sentem? Esse abismo, por vezes simbólico, tem contornos bem definidos. Afinal, a pobreza não é apenas uma ideia abstrata ou uma metáfora social – expressa-se em números alarmantes, em desigualdades e em vidas marcadas por privações diárias. Só compreendendo as suas múltiplas dimensões – sociais, económicas e humanas – é possível reconhecê-la como o fenómeno complexo e estrutural que é. A pobreza não se define apenas pela escassez de rendimentos ou meios para garantir uma subsistência digna. Trata-se de uma realidade persistente que se expressa na fome, na subnutrição, na limitação do acesso a serviços essenciais, na discriminação, na exclusão social e na ausência de voz nos processos de decisão que moldam a vida em sociedade.
De acordo com as Nações Unidas, cerca de 10% da população mundial enfrentava, antes da pandemia, situações de pobreza extrema, lutando diariamente para satisfazer necessidades básicas como a saúde, a educação, o acesso a água potável e saneamento básico. As estimativas mais recentes indicam que, em 2024, quase 700 milhões de pessoas subsistiam com menos de 2,15 dólares por dia, o que equivale a 1,90€. Uma em cada seis crianças vive em situação de pobreza extrema. Estes números não são fruto do acaso, mas resultado de dinâmicas históricas, políticas e económicas que continuam a reproduzir desigualdades. A pobreza está enraizada em estruturas que privilegiam alguns enquanto silenciam e marginalizam outros. As projeções indicam, assim, que o objetivo global de erradicar a pobreza extrema até 2030 não será concretizado, prevendo-se que mais de 600 milhões de pessoas permaneçam privadas de condições de vida dignas. A crise provocada pela COVID-19 veio inverter parte dos avanços obtidos no combate à pobreza, empurrando milhões de pessoas de volta para situações de vulnerabilidade. Os maiores índices concentram-se, sobretudo, em países afetados por conflitos e fragilidades. Também em Portugal, apesar dos avanços, a pobreza continua a afetar uma parte significativa da população. Em 2024, cerca de 20% dos residentes no nosso país viviam em risco de pobreza ou exclusão social, de acordo com os dados do INE. Em 2022, Portugal era o 11.º país da União Europeia com maior taxa de pobreza. Apesar dos números gritarem, a pobreza continua a ser tratada como um ruído de fundo – uma falha do sistema que se aprendeu a tolerar.
No entanto, como alerta Adela Cortina, filósofa espanhola, o problema talvez seja ainda mais profundo: não se trata apenas de ignorância, mas sim de rejeição. O preconceito é dirigido aos que não têm recursos, e essa rejeição transforma a pobreza não apenas num problema económico, mas numa marca social. Uma fronteira que exclui, estigmatiza e desumaniza. Reconhecê-la como tal é o primeiro passo para desmontar a estrutura que a sustenta. De facto, esta indiferença social e política alimenta a continuidade de um sistema em que a desigualdade é vista como inevitável, e em que a exclusão se disfarça de resultado de mérito.
Como sublinhou Alfredo Bruto da Costa, pioneiro dos estudos sobre a exclusão social em Portugal, a solução para o problema da pobreza “requer a resolução de dois problemas distintos, embora interligados: a privação e a falta de recursos”. Esta distinção é essencial para compreender que a pobreza não se resolve apenas com a distribuição de mais rendimento, exige também uma mudança estrutural nas oportunidades que a sociedade oferece. Antes de económica, a resposta deve ser política e ética, envolvendo o reconhecimento da dignidade e do valor de quem é sistematicamente deixado à margem. Estar à margem não significa apenas ter menos, significa viver com menos possibilidades de escolha, menos acesso, menos voz. Significa ter de lutar diariamente por coisas que, para outros, são garantidas. E, muitas vezes, significa também lidar com o estigma, com a ideia enraizada de que quem é pobre “é porque quer” ou “não se esforça”. As desigualdades não se veem apenas nos números. Estão inscritas nas rotinas, nos corpos, nas pequenas decisões que, embora banais, moldam futuros. Há fronteiras que não estão desenhadas nos mapas, mas estão marcadas nos percursos de vida. A pobreza não é só material, é também simbólica. Está no silêncio e na vergonha. E é por isso que combater a pobreza é também desmantelar fronteiras – reais, cruéis e invisíveis – que separam, julgam, limitam acessos, mudam destinos, criam um “nós” e um “eles” dentro da mesma nação. No fundo, quem vive a pobreza carrega mais do que a escassez, carrega o peso de ser constantemente lembrado de que não pertence.
Manuela Silva, especialista em economia, pobreza e nas questões das mulheres, afirmava que não há verdadeiro progresso sem justiça social. Enquanto a desigualdade for uma das faces mais visíveis da pobreza, o progresso será incompleto. O ativismo surge como resposta à marginalização, nascendo da resistência à ideia de que a pobreza é inevitável.
Esther Duflo, economista francesa premiada com o Nobel em 2019, reforça essa ideia ao destacar que a verdadeira mudança exige políticas públicas eficazes e inclusivas, que combinem a ação governamental com a participação ativa da sociedade. A mudança ocorre quando reconhecemos a dignidade do outro e lutamos por um mundo onde todos tenham as mesmas oportunidades, superando as barreiras económicas, sociais e culturais que ainda dividem a sociedade. Parte de nós dizer, em palavras e em ação, “não” à injustiça e “sim” à construção de um mundo mais igualitário.
No fundo, falar de pobreza é falar de fronteiras, algumas feitas de tijolo, outras feitas de preconceito. Fronteiras que, embora invisíveis, moldam vidas e delimitam possibilidades. Quando as aceitamos como naturais, acabamos por legitimar, muitas vezes em silêncio, um sistema que exclui. O mais inquietante é que estas fronteiras se tornam parte do quotidiano. Quem nasce na periferia, seja geográfica, social ou simbólica, aprende desde cedo a baixar as expectativas, a adaptar os sonhos à realidade estreita que lhe foi imposta. E, nesse processo, perdem-se talentos, vozes, ideias. Perde-se futuro.
Falar de pobreza, por isso, não é apenas falar de números ou estatísticas – é falar de pessoas, de histórias, de silêncios que precisam de ser ouvidos. Enquanto ignorarmos as fronteiras invisíveis que ela impõe, continuaremos a reproduzir um sistema desigual. Derrubá-las começa por reconhecê-las e por nos recusarmos a aceitá-las como inevitáveis.