A liberdade das esquecidas
Maria Lamas, uma mulher que lutou pelos direitos das mulheres e era uma voz ativista contra o Estado Novo, percorreu Portugal nas décadas entre 40 e 50 e mostrou o lado esquecido do país, as mulheres.


Andreia Rabemananjara
20 de agosto de 2025
Há perguntas tão simples, mas carregam camadas profundas; “Somos livres?” é uma delas. E quando feita a uma mulher, essa questão capta as memórias de história, de luta e de cansaço. E apesar de tantos avanços, ainda há medos que nos acompanham, silêncios que temos de seguir e espaços onde a nossa presença é vigiada. “Somos muito escravas do nosso corpo”, dizia uma mulher na entrevista a Maria Lamas que ficou registada no seu livro As Mulheres do Meu País (publicado em fascículos entre 1948 e 1950). As palavras que as mulheres mais utilizavam nas entrevistas para descrever a sua vida eram triste, submissa, miserável e a que mais destacavam era escrava.
A liberdade, que devia ser um direito garantido, muitas vezes parece um privilégio negociado. Liberdade é uma daquelas palavras que é mundialmente popular, que todos nós procuramos, mas poucas vezes paramos para questionar. O que significa ser livre quando se nasce mulher? Ter escolha? Claro, mas até que ponto essas escolhas são realmente nossas? Há sempre um “e se” ou “deverias” em cada passo que damos, como já ouvimos diversas vezes: “deverias vestir-te mais modesta, mas não tão coberta”, “comporta-te com dignidade, mas não sejas tão aberta”, “não andes sozinha à noite, isso é um convite”, “não fales tão alto, mas também não tão pouco”. A liberdade feminina é constantemente medida, avaliada e condicionada.
Olhar para o passado ajuda a perceber o quanto ainda falta. Maria Lamas, uma mulher que lutou pelos direitos das mulheres e era uma voz ativista contra o Estado Novo, percorreu Portugal nas décadas entre 40 e 50 e mostrou o lado esquecido do país, as mulheres. Que estas carregavam o peso da casa, o excesso de trabalho, o silêncio e o isolamento. Como era ser uma mulher no solo português. E em vez de romantizar, ela denunciou. Como escreveu na sua obra As Mulheres do Meu País: “Todas as mulheres do povo se parecem umas com as outras, vivam onde viverem… A sua natureza é a mesma. Mais ou menos rudes conforme o seu nível de vida, todas são irmãs na luta, na resistência ao trabalho e ao sofrimento, no heroísmo obscuro…” (Lamas, 1950, p. 204). Décadas depois, Susana Moreira Marques seguiu os passos de Maria Lamas em Lenços Pretos, Chapéus de Palha e Brincos de Ouro, aonde observa “Algumas mulheres preferem não falar. Reconhecem, de entre tantos direitos conquistados, o direito à continuação da invisibilidade” (Marques, 2023, p. 72). Uma comparação entre o passado e o presente e surge a questão, o que é que afinal mudou?
Uma forma alternativa de expressar verdades e fazer críticas sociais encontra-se na música. Que força é essa, amiga? de Capicua, é uma dessas. Esta canção da Capicua é uma versão de uma música original de Sérgio Godinho de 1973. A letra fala de uma força imposta de como ser mulher é sinónimo de aguentar tudo como o trabalho, os filhos e os julgamentos. “Que força é essa que trazes nos braços?”, pergunta a artista que revela a ideia de uma mulher que existe para servir os homens. Por trás dessa imagem há cansaço, há dor, há histórias. A música expõe essa exigência constante e lembra que até a força tem um limite e a mulher também é um ser humano que quer ser livre e respeitado.
É fácil acreditar que está tudo resolvido porque afinal as mulheres podem votar, estudar, trabalhar e até ocupar cargos de poder. Mas basta olhar as notícias com atenção para perceber que a liberdade feminina ainda encontra muros. Em 2024, a PSP e a GNR receberam mais de 30 mil queixas por violência doméstica, resultando em 22 mortes, das quais 19 foram mulheres. Apenas 13% das denúncias resultaram em condenações efetivas (CIG,2024). No mercado de trabalho, as mulheres ganham em média menos 242 euros por mês que os homens, uma diferença que aumentou 71% na última década (Diário de Notícias, 2024). Além disso, mais de 500 portuguesas recorreram a clínicas em Espanha para interromper a gravidez, devido aos prazos restritivos e à escassez de médicos disponíveis em Portugal (Público, 2024). A liberdade existe, mas é frágil, parcial e muitas vezes condicionada pelo contexto, pelo medo e pela falta de justiça. Ser mulher hoje ainda é viver em alerta.
Voltamos à questão de se somos realmente livres. Depois de tudo isto é quase desconfortável. Porque a resposta não é clara. É verdade que há mais direitos, mais visibilidade, mais espaço, mas também é verdade que ainda se espera muito das mulheres. Espera-se força, garra, resistência e perfeição. A liberdade feminina continua a ser negociada juntamente com o medo, com o cansaço e com a culpa. E enquanto houver mulheres a viver com medo, a calar a própria dor ou a pedir desculpa por existir como são, a liberdade não será plena. Talvez o caminho esteja em continuar a fazer perguntas, a incomodar e a persistir.



