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Este outono que nos toca

15 de Outubro de 2020, por M. Suzana Ferreira
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Bruno Cunha

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Inês Espada Vieira

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João Pires Silva

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Luciano Ferreira

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Mafalda Guia

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Manuel Guedes

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Miguel Carvalho

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Nélio Pita

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Pedro Guimarães

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Ricardo Cunha

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Suzana Ferreira

Há dias, em conversa com uma amiga que por força da pandemia não via há muito tempo, ao perguntar pelos seus sogros, respondeu-me com um vulgar e lacónico “Lá estão.” Prosseguindo a conversa, foi dizendo que são agora assistidos por quatro senhoras, duas de dia e duas de noite, e que esta solução, embora não se adequasse a todas as bolsas, era a possível para colmatar os cuidados que o filho não lhes conseguia dispensar.

 

Dias mais tarde, por ocasião de um evento, no lançamento de um livro, interpelou-me uma senhora, anciã, a quem foi dada a possibilidade de ir felicitar aquele famoso escritor por quem nutria uma admiração sem fim. A sua figura humilde anunciava uma vulnerabilidade sofrida e resiliente, marcada por uma doçura transparente que os anos de vida souberam cimentar. Perante uma plateia efusiva, com o seu vestido domingueiro cuidado com primor, levantou-se apoiada na sua bengala e, avançou pela sala, arrastando o peso das suas pernas e de toda a sabedoria acumulada pelos longos anos de uma vida sem instrução, mas plena de educação e delicadeza. Confesso que sentada e absorta em pensamentos, não pude deixar de registar a riqueza daquela imagem que ali fazia jus ao antigo adágio: A idade não nos protege contra o amor. Mas o amor, de certa forma, protege-nos contra a idade. A senhora parecia feliz, tranquila, e nem as suas pesadas maleitas lhe retiravam o ar sereno com que sorria e a alegria que aquele momento lhe proporcionava.

 

De facto, vivemos hoje um outono morno e sem paralelo, em que muito se tem falado nos idosos, nos lares, nos contágios e em que não nos cansamos de ouvir e ler um sem número de considerações sobre a solidão que consome estas pessoas. Certamente que todos nós temos histórias que nos atropelam a essência do que somos, memórias que nos habitam e que constroem a nossa perceção do que queremos e desejamos para os nossos pais em fase de idade mais avançada, para os amigos e tios que vão passando para o outono da vida. Por coincidência, iniciamos o mês de outubro com o dia do envelhecimento ativo e chegaremos ao seu final, nós católicos, coroando-o com o dia de todos os santos a que se segue a memória dos que já partiram. Para mim, este é um tempo saudoso, sinto-o de forma peculiar pois aqueles que julgamos no Céu, aqueles que nunca morrem, manifestam uma constante presença na nossa vida. Acompanham-nos, quanto mais não seja porque nunca abandonam o nosso interior.

 

As gerações que nos antecedem permitiram que nós acontecêssemos, conferiram-nos um legado valioso que viabilizou o nosso futuro. O Papa salientou recentemente que os idosos são "as raízes" dos jovens e afirmou que "uma árvore arrancada das suas raízes não cresce, não dá frutos nem flores". Sim, esta é a nossa maior herança, um património impagável de valores que incorporamos e que conferem sentido aos traços do rosto das pessoas mais velhas.  São estes traços de vida que se lhes afundam na pele que agregam os momentos felizes e os menos bons que vivemos com eles. São também eles que embelezam o seu rosto porque lhes acrescentam uma história que, convém que se diga, fará parte da nossa história, da nossa narrativa de vida.

 

Parece quase jurássica a ideia peregrina que também neste mês surgiu com particular relevo, relativa à possibilidade de os filhos serem deserdados, através do direito sucessório, pelos maus tratos infligidos aos seus ascendentes idosos. Mal vai uma sociedade quando são necessários quadros normativos punitivos para aplicar aos que não respeitam o que serão os princípios mais básicos da convivência humana: os mais novos devem cuidar e amparar os mais velhos. Parece-me por isso inaceitável que a lei não acautele e não puna, com uma mão mais severa, certos atos atentatórios da dignidade da pessoa humana tendo que recorrer a sanções para ver observadas as funções de prevenção social.
Independentemente dos aspetos jurídicos, do local onde os cuidados são prestados e da forma de cuidar, sejam eles prestados no próprio domicílio, numa residência externa, na casa de um familiar, ao cuidado das ditas “senhoras”, com mais ou menos meios, acompanhar e amar até ao fim é um dos imperativos mais importantes na vida de cada um. 

 

E esse é também o melhor testemunho que podemos deixar às gerações vindouras: podermos ensinar aos nossos filhos que os avós estão jubilados e que por definição o tempo em que assim se encontram será necessariamente um tempo em que devemos contribuir para o seu verdadeiro júbilo. Neste Outono e nos demais que se seguirão, possamos cada um de nós contribuir para que o “outono da vida” dos que nos são próximos seja um tempo jubilado de genuíno significado e amor.

 

M. Suzana Ferreira

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