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O misterioso "servo de Yahvé" (Is 40-55)

13 de Junho, por BRUNO CUNHA, CM
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Suzana Ferreira

Introdução 
No livro do Deutero Isaías (Is 40-55), também conhecido como “livro da consolação” (Is 40,1), descreve-se a relação entre Israel, que se encontra no exílio da Babilónia, e Deus, que quer, mais uma vez, libertar e salvar o seu povo. Por meio de uma quantidade muito diversificada de géneros literários (discursos judiciais, hinos de louvor, proclamações de salvação, cantos do servo de Yahvé, etc.), da mudança constante de vozes e da entrada em cena de vários personagens, somos convidados, como alguns exegetas propõem, a abordar o texto como se tratasse de uma “representação” ou “dramatização” de acontecimentos históricos que a comunidade de fé quis perpetuar como sinal de união e de comunhão entre Deus e o seu povo num projeto de restauração da nova Sião. Entendido com um drama, o Deutero Isaías descreve o restabelecimento da relação de amor e confiança entre o povo que viveu a experiência do exílio, dividido entre a Babilónia e os que ficaram no meio das ruínas de Jerusalém, pecador e cego, revoltado com Deus, desconfiado da Sua soberania sobre a história, e Deus que se manifesta como soberano de toda a história, superior aos deuses pagãos, que intervém na história, suscitando um libertador (Ciro) para os exilados da Babilónia, e que quer que o seu “servo” assuma o seu chamamento e missão para ser “luz para as nações” (Is 42,6; 49,6). 
Profundamente inspiradora no seio desta relação é a figura do “servo de Yahvé”. Trata-se de um dos temas mais estudados do Antigo Testamento e mais citado no Novo Testamento pela sua interpretação messiânica e cristológica. Uma das questões que desde sempre fascinou os biblistas foi a identidade deste servo: será o profeta Isaías ou algum outro profeta pos-exílico? Será a nação Israel/Jacob com a qual é identificado várias vezes ao longo do texto (41.8; 44.1.21 (2x); 45.4; 48,20; 49.3)? Será ainda um grupo de exilados regressado do exílio da Babilónia ou uma “figura literária” que personifica os anseios existenciais e religiosos de um coletivo/povo? 


Neste tema estou convencido que a opinião do biblista Westermann é a mais acertada. Segundo ele, a exegese correta sobre o “servo de Yahvé” não deve ser controlada pela pergunta sobre a sua identidade, porque o texto não lhe responde nem tenta responder, mas antes pela pergunta: “que acontece entre Deus, o “servo” e aqueles a quem a sua missão diz respeito”. O facto de poder haver uma intencionalidade na não identificação (inequívoca) do “servo de Yahvé”, associada à interpretação do livro do Deutero Isaías como um texto dramático, apresentam-nos uma perspetiva muito rica e interpelante sobre este personagem literário e teológico e convidam-nos a uma leitura e caminho espiritual que questionam a nossa própria relação com Deus. Como resultado deste caminho espiritual sobressaem algumas características que traçam o perfil do “servo”: 

1. Um personagem que nasce de uma relação
“Servo” na Bíblia significa “pertencer ao Senhor”, “ser protegido” ou “confiar em Deus” e a expressão “servo de Yahvé” implica uma relação. Neste sentido, o seu significado depende do outro termo com o qual está relacionado: ser “servo” é definido por quem é o seu “senhor”. Assim, analisando a sequência dramática, é possível verificar que esta relação é um dos eixos principais da trama e que permite uma constante evolução e redefinição do significado de “servo”. No início do DtIs, é apresentada uma queixa de Israel: “O Senhor não compreende o meu destino, o meu Deus ignora a minha causa” (40,27), o que revela que o relacionamento com Deus é conturbado e que muitos pensam que foram esquecidos e abandonados à sua sorte. Ao mesmo tempo, eles próprios abandonaram a Deus e entregaram-se ao culto dos deuses pagãos que Deus denuncia: “Olhai, nada sois, as vossas obras nada são; é abominável escolher-vos como deuses” (41,24; 44,9-20). Aqui surge o servo “cego” e “surdo” que não reconhece o seu verdadeiro Deus e Senhor (42,18-25; 43,8-13). Assim, nem Deus é o “senhor” do seu “servo” nem o “servo” reconhece Deus como o seu “senhor”.
Mas este não é o relacionamento que deve existir entre Deus e o seu servo. O caráter performativo da palavra divina, “viva e eficaz” (55,10-11), expressa de várias maneiras a mudança e transformação desejada por Deus que não abandonou seu povo, que quer e pode salvá-lo: “Não temas, pobre vermezinho de Jacob, mísero inseto de Israel, que eu te ajudarei... Farei de ti uma grade aguçada, nova...” (41,14-15). Para além da palavra divina, a ação de Deus na história constitui prova da transformação que Ele quer operar no seu “servo”: a) Deus declara que é o único senhor da história “Eu formo a luz e crio as trevas, dou a felicidade e crio infortúnios, eu sou o Senhor, que faz todas estas coisas” (45,7); b) Denuncia os falsos deuses e afirma a sua própria grandeza: “Todos juntos nada são, as suas obras são uma nulidade, e os seus ídolos são ar e vento” (41,29) c) Deus manifesta o seu poder de atuar na história ao escolher Ciro como instrumento para libertar o seu povo do exílio da Babilónia (44,28-45,1). 
Ao mesmo tempo, toda a ação, que convida o “servo” a refletir sobre o seu relacionamento com Deus e a sua verdadeira identidade, é acompanhada de várias descrições da natureza que reportam à transformação existencial e espiritual que o povo precisa de fazer: “Farei brotar rios nos morros escalvados e fontes do fundo dos vales…” (41,18-20; 43,19-20; 43,19-20; 49,10-12; 51,3).
Depois da intervenção divina na história, libertando o seu povo do cativeiro de Babilónia (48,20), o “servo” toma a palavra para apresentar uma transformação no seu relacionamento com Deus: ele aceita a sua condição de “servo” para fazer Jacob regressar a Yahvé (49,5), comporta-se como um discípulo (50,4), confia na ajuda de Deus (50,7), sofre, carrega a culpa de muitos e intercede pelos pecadores (53,12). Ou seja, dá-se uma evolução na relação entre Deus e o seu “servo” que fundamenta uma transformação profunda na identidade e ser do próprio “servo”. Assim, quanto mais o “servo” toma consciência de que Deus é o seu senhor e rei (43,15), mais e melhor ele sabe, sente e vive o seu chamamento para ser “servo” do seu senhor. Esta relação, por sua vez, expande-se e envolve espectadores, ouvintes e leitores, tornando-os parte do drama pelo efeito catártico que causa. A partir da identificação com as queixas, o fardo e o sentimento de abandono do “servo”, mas também com a sua cegueira, pecado e afastamento de Deus, cada um é convidado a reconhecer a grandeza divina sobre a história e os homens e, assim, “purificar” o seu relacionamento com Deus e a identidade do próprio “servo” que deve ser “instrumento” de Deus, seu senhor e rei.

2. Um personagem multifacetado
Intimamente ligado à dimensão relacional do “servo” está outra das características do seu perfil: trata-se de uma figura literária poliédrica e multifacetada. Isto deve-se ao facto de ser um personagem vivo e dinâmico que, acompanhando o desenrolar da sequência dramática, se vai caracterizando de maneira diferente e a sua identidade se vai reformulando. Por outras palavras, o carácter poliédrico do “servo” deve-se em grande parte ao facto de ser um personagem “em construção”, primeiro infiel e depois fiel (40,27; 43,22-24 46,12-13; 48,1-2, 6-8), que caminha entre a dúvida e a confiança em Deus, entre o mal-entendido e a compreensão - cego e surdo - (40,21,28; 42,7,16; 43,8), entre passivo e ativo, até que surge o último canto do servo, onde a sua ação consiste numa “passividade decidida”. Nesta aparente oscilação, é possível encontrar um fio comum no seu perfil. Desde o início, o servo é cego, pecador e revoltado contra o plano de Deus (40,27; 43,27; 48,8). Mas, é este mesmo servo que desde o princípio é chamado por Deus para ser o portador da sua Palavra e o instrumento do seu propósito redentor (41,8-13; 44,1-5; 49,1-3). Ele é o servo da hora das trevas, da humilhação e da transformação, e aquele que Deus escolheu para ser o instrumento da sua exaltação e glória, o servo ao mesmo tempo santo e pecador que é infiel, mas no final também é fiel. Assim, a sua descrição passa do abuso, vergonha, desespero, recriminação e pecado à promessa, vindicação, realização e exaltação. Noutras palavras, é do servo cego e surdo, infiel e duvidoso que nasce, cresce e se forma o servo fiel e ideal e só quando o servo cego e surdo (42,18-20) reconhece Deus como o seu senhor, está preparado para a mensagem de consolo do DtIs: a restauração da Jerusalém pós-exílica. 
No final, o “servo” apresenta-se como uma criação literária específica do DtIs que aparece ao longo do livro e lhe confere uma unidade notável ao assumir a personificação de uma identidade coletiva, de um povo que se reconhece e identifica com o servo sofredor e redentor que depende e confia totalmente em Deus como garante da restauração da mãe Sião e dos filhos novos, verdadeiros “servos de Deus” (54,17).

3. Um personagem aberto
Para alguns exegetas, o “servo de Yahvé” é um personagem misterioso porque se refere ao “mistério” como o espaço onde acontece o relacionamento pessoal entre Deus e o homem. Ele é o “par” de Deus no livro do DtIs, que está no centro da Sua eterna preocupação e que constitui o objeto privilegiado do Seu amor e ternura. Constituindo uma figura completamente diferente e sem paralelo no Antigo Testamento, representa, em primeiro lugar, aqueles que aceitaram a missão de trazer Jacob/Israel de volta para Deus (49,5) e de ser luz para as nações (49,6). Mas, ao mesmo tempo, o “servo” também pode ser entendido como uma imagem teológica aberta que não coincide totalmente com uma figura histórica, um indivíduo ou um grupo e, no entanto, a sua figura permite que quem quer que seja se identifique com as suas características e atualize a sua própria imagem pelo menos em alguns aspetos particulares. Neste sentido, por exemplo, os cantos do servo podem ser entendidos como uma mediação teologizada e dramatizada do destino de qualquer ser humano e da capacidade de cada pessoa para lidar com o sofrimento. Com esta reflexão percebe-se com mais claridade a possível intencionalidade que existe no DtIs quanto à ambiguidade respeitante à identificação do “servo de Yahvé”. Ela tem um propósito: que cada espectador/leitor se sinta desafiado e atraído pelo grande projeto de amor com o qual Deus sonha no livro e se identifique com o “servo de Yahvé”, revendo-se no caminho espiritual de conversão proposto pela sua figura literária que convida a uma relação mais pura e verdadeira com Deus. 

 

Conclusão
Pode concluir-se que o “servo de Yahvé” no DtIs não é um personagem estático, mas vivo e dinâmico, em construção e transformação contínua, que se vai moldando e reconfigurando à medida que a sequência dramática progride. Por sua vez, este caráter dinâmico deve-se à sua natureza relacional e o seu significado depende intrinsecamente do outro termo com o qual está relacionado: ser “servo” é definido por quem é o seu “senhor”. Assim a trama dramática mostra que o servo se torna cada vez mais consciente da sua identidade e missão, tanto quanto é capaz de perceber que Deus é o Rei, o Criador, o único Deus, aquele que quer e é capaz de agir na história. Por sua vez, este relacionamento gera um caráter complexo e multifacetado do “servo”, cuja descrição passa do abuso, vergonha, desespero, recriminação e pecado à promessa, vindicação, realização e exaltação. Por fim, ele também é um personagem teologicamente aberto, já que o espectador, o ouvinte ou o leitor podem atualizar em vários graus os diversos aspetos relacionados com o símbolo literário do “servo de Yahvé”. 
Deste modo, quem é afinal este “servo”? Pode ser Jesus, tal como o defendem muitos exegetas cristãos? O último canto do servo comprova claramente que sim (Is 52,13-53,12). Pode ser qualquer cristão ou pessoa que procura aprofundar a sua relação com Deus, conhecendo-o e reconhecendo-se como seu “servo”? Sem dúvida. Por esta razão aconselho vivamente a leitura e meditação deste livro a partir da relação que se descreve entre Deus e o seu servo. Ajudará definitivamente a crescer e a fortalecer a misteriosa relação de amor que existe entre cada um de nós “servos” e Deus “nosso rei e Senhor”. 

 

Pe. Bruno Cunha, CM

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