O que está a acontecer em Cabo Delgado (Moçambique)?
08 de Agosto de 2020, por LUCIANO FERREIRA, CM
Que está a acontecer em Cabo Delgado?
«O mundo não tem ainda ideia do que está a acontecer, por causa da indiferença e pelas muitas guerras e tragédias dos nossos dias...» (Bispo de Pemba, capital de Cabo Delgado, à Lusa, em 23.07.20).
É sobre esta província do extremo nordeste de Moçambique, com 82.625 km2 e 2.538.278 h., a sofrer uma «grande tribulação e um imenso drama humano» que aqui escrevo (cf CEM, 13.06.20).
Porque se fala tanto desta região de Moçambique?
Primeiramente, pela descoberta e anúncio, em 2012, de grandes riquezas: triliões de pés cúbicos de gás liquefeito e de grandes reservas de hidrocarbonetos; e enormes jazigos de níquel, grafite, mármore, rubis, safiras e outras pedras preciosas, além de abundantes recursos florestais, pesqueiros, de arte e turismo;
Depois, pela «insurgência» armada que, progressivamente mais violenta e cruel, tem alastrado a muitas vilas e aldeias, sob a forma de guerrilha e terrorismo, com um cortejo de destruições (que não poupa igrejas), mortes (mais de mil segundo a ONU), fuga das populações e um número crescente de refugiados (712 mil) dentro daquela Província, sobretudo junto à capital (Pemba), mas também nas vizinhas províncias do Niassa e Nampula, em busca de segurança e sobrevivência.
Os grupos de insurgentes andam associados e são financiados fora e dentro de Moçambique, por redes organizadas e criminosas de tráfico de droga pesada (heroína) e dos vários recursos locais de alto valor. Nos últimos 12 a 18 meses, são cada vez mais claramente ligados ao Estado Islâmico (EL) com uma ideologia de cariz religioso extremista, atraindo, treinando e equipando grupos locais, na maioria de jovens descontentes.
Como se isso não bastasse, veio também: a devastação do ciclone Keneth (maio\2019); e, desde março de 2020, a pandemia do Covid 19 a alastrar no País, tendo hoje esta província, o 2º maior número de infectados, logo a seguir a Maputo\cidade e antes de Nampula, a mais populosa.
Que causas por detrás desta situação dramática?
O testemunho directo de quem actua sobre o terreno, como o bispo de Pemba, D. Luiz Lisboa, incansável nos seus apelos dentro e fora do País, no meio de um cenário de violência e martírios, encorajado pelos bispos da CEM, dos responsáveis de Organizações humanitárias católicas (Cáritas, AIS…) e outras é, aqui, especialmente relevante.
Alguns títulos recentes dos Media, de fora e de dentro, são reveladores: «o drama humanitário dos deslocados internos, vítimas da insurreição islamita» (France 24, 30\07\20); «Ataques em Cabo Delgado, deslocam milhares» (Visão, 28\11\19); «A misteriosa insurgência jihadista»; extremistas e narcotraficantes aproveitam a ausência de governação…para se instalarem com sucesso« (Canal Moç., 29\07\20);
É possível assinalar, entre as principais razões deste conflito e sua face oculta:
- A longa ausência do Estado e o quase vazio da governação na região: «a causa de tanto sofrimento tem raízes profundas no tempo em que a população foi esquecida…» (CEM, 13\06\20);
- Por contraste, os acordos dos governantes com multinacionais poderosas (Total, Eni, Anadarko, Shell, Exxon-Mobil, BP, Sasol), com avultados lucros e investimentos anunciados, desde 2017, com expropriação de terrenos e reassentamentos forçados, sem séria atenção ao já notório descontentamento popular, nem esforço de inclusão dos cidadãos.
- A ideologia de extremismo islâmico infiltrada nos últimos anos em grupos da juventude local (radicalização bebida em países árabes do golfo) e apoiada pelo Estado Islâmico (pretenderá estabelecer ali um Califado?), que o Governo tem desvalorizado;
- Os interesses económicos em jogo, dentro e fora do País, perante as riquezas apetecíveis e o negócio da droga pesada, vinda do Afeganistão (600 milhões de dólares por ano), explorando as fragilidades de fiscalização e defesa da extensa costa marítima e da fronteira com a Tanzânia; acresce a teia da corrupção endémica no Pais, envolvendo políticos influentes e funcionários da Polícia, Migração e Alfândegas.
Que soluções de futuro?
No imediato, continuar a fomentar a solidariedade e apoio humanitário concretos dentro e fora do País. À semelhança do Bispo de Pemba, da CEM e do próprio Papa no dia de Páscoa, é preciso derrubar a indiferença do mundo e multiplicar as alianças de bem para socorrer as vítimas desta tragédia. Em Portugal, as agências noticiosas como a Lusa, a Ecclesia e a acção das dioceses de Braga (com pessoal voluntário em Ocúa, há 5 anos) e Santarém (partilha quaresmal para Cabo Delgado), bem como a Campanha da AIS e da Cáritas Portuguesa, são exemplos a seguir.
Os governantes do País terão de ganhar novamente o povo e em concertação com países vizinhos (SADCC) e a comunidade internacional (ONU, CPLP)… procurar afincadamente a eliminação das causas do terrorismo para um futuro de estabilidade e paz, não apenas pela via militar, mas na base do respeito pelos direitos e a justiça dos cidadãos e buscando a sua inclusão activa nos benefícios sociais e de desenvolvimento que os abundantes recursos da sua terra lhes podem oferecer.
P. Luciano Ferreira, CM