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O meu Cristo partido

14 de Setembro de 2020, por JOÃO PIRES SILVA
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Bruno Cunha

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Inês Espada Vieira

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João Pires Silva

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Luciano Ferreira

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Mafalda Guia

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Manuel Guedes

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Miguel Carvalho

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Nélio Pita

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Pedro Guimarães

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Ricardo Cunha

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Suzana Ferreira

Para oferecer aos amigos, tinha sempre à mão um exemplar do livro O Meu Cristo Partido, escrito por Ramón Cué. Um livro pequeno (160 páginas, na edição que me coube) que, em sua opinião, encerra o essencial da mensagem de Jesus Cristo. 
 

Será, porventura, uma imagem invulgar. Um Cristo bastante mutilado: “sem rosto, sem um braço, sem uma perna, sem ... cruz”. Estranho? Talvez não! Este Cristo desfigurado tem, não obstante, o condão de nos interpelar incisivamente: “Quero que, vendo-me partido, te lembres de tantos irmãos que convivem contigo e que estão, como Eu, partidos, esmagados, oprimidos, doentes, mutilados... Sem braços, porque estão desempregados ou ainda não conseguiram o primeiro emprego; sem pés, porque lhes bloquearam os caminhos da vida; sem cara, porque lhes roubaram a fama, o mérito, o prestígio...”.
 

Era a oferta mais valiosa com que MT nos poderia obsequiar. E afirmava-o com verdadeira convicção: “É a melhor prenda que tenho para lhe oferecer, João”.  E fora-o, com efeito. Li-o de um fôlego. Que interpelações emergem daquele texto! Cada frase a convocar - a desafiar - a minha fé, as minhas volúveis práticas cristãs, as minhas frágeis tentativas de imitação dos discípulos. “É necessário sermos heróis”, confidenciava-me MT. Verdadeiramente, fora o que, ao longo dos tempos de convívio, pude ouvir, sentir e observar nos pensamentos que MT verbalizava, nas atitudes que tomava, nos compromissos que assumia. Era, inequivocamente, uma alma ditosa.
 

Já no entardecer da sua vida terrena, e com maleitas de sobra – as suas, as do marido e as de outros familiares -  MT a garantir-me que nos momentos de dor, mesmo de dor intensa, jamais duvidara da presença do Mestre. Não havia nenhuma tormenta que lhe saísse ao caminho que não tivesse um sentido. Todas. Que força! As razões que a guiavam só podiam ser oriundas de dinâmicas que estão para lá do mundo material. Eram, seguramente, valores distantes que inspiravam o seus pensamentos e as suas condutas. 
 

O ambiente sócio-económico de MT era notoriamente confortável. Não obstante, nutria um solidário relacionamento com os vizinhos do outro lado da rua, donde, frequentemente, lhe chegava o cheiro da pobreza. Assomava, todas as manhãs, à janela do seu quarto ou da sua biblioteca, para saudar a senhora MA, uma pobre viúva que residia no prédio-colmeia, do outro lado da rua. MT saudava-a com alegria e deferência fraternas, e a senhora MA, envanecida por ter uma senhora amiga no prédio dos ricos, vangloriava-se com comedida exuberância. Porém, ambas sabiam que aquilo que verdadeiramente as unia era uma gavinha tão forte que dispensava os juízos e os critérios mundanos; era a memória e a presença do irmão maior - Jesus Cristo. 
 

Certo dia, faltaram as forças a MT para, entre outras incumbências, caminhar até à igreja paroquial de São Tomás de Aquino, onde buscava alimento espiritual. Seguiram-se outras provações de gravidade irreversível - uma sucessão de testes à solidez da sua fé. «Há momentos em nos questionamos: por quê meu Deus?», dizia-lhe eu certo dia. «Nunca. Nem por um momento», respondia-me com firmeza. «Tudo o que Deus me pede tem um sentido na minha vida e no caminho da minha salvação. É sempre uma oportunidade para eu crescer espiritualmente».
 

MT era dotada de uma beleza que não se desvanecia com a idade. Bem pelo contrário. A brancura dos seus cabelos acentuava-lhe a candura; as rugas faciais incrementavam a bonomia que lhe adornava o semblante; a curvatura postural solenizava a sua presença, o tom pausado da sua voz enobrecia o conteúdo das suas narrativas. Para lá do deleite, era sempre interpelante ouvi-la, especialmente quando se referia ao mundo, às mulheres e aos homens, seus irmãos. Inquietava-a sobremaneira as indiferenças sociais, a dureza dos corações, as iniquidades. Preocupada, temia ser corrompida por essas maleitas: «Se tal me acontecer, jamais me poderei considerar cristã», garantia inquieta.
 

Entrementes, ao cuidar do homem com quem partilhou intensamente a vida, MT fracturou vértebras. Muitas vértebras. Aquele tipo de fracturas que jamais saram. Do leito ao lado, passou a invocar a clemência divina para ambos: para ela, pela suavização das dores físicas; para o marido, pelo discernimento que os diálogos com o Altíssimo pressupõem.
 

Quando partiu para o Pai, deixou-nos uma herança enorme: a responsabilidade - também o privilégio - de termos privado com uma cristã verdadeiramente iluminada. Por isso, a memória de MT alimenta-nos e alegra-nos continuamente, ao mesmo tempo que nos convoca para comprometimentos cada vez mais sólidos e audazes: que sejamos candeias fora do alqueire, num mundo corrompido por indiferenças de sobra e pelo apego voraz a bens e a valores terrenos; que tenhamos a coragem de perscrutar os verdadeiros desígnios daquele Cristo Partido que, também pelas nossas incoerências e fraquezas, recusa o conserto que os homens lhe pretendem facultar.    

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