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Uma reforma para estar em forma

A imagem do autocarro vazio, indisponível para acolher e transportar para outros territórios, para resgatar as pessoas de lugares de desconforto, ressurge, uma e outra vez, quando reflito sobre a situação de algumas comunidades cristãs na Europa.

Uma reforma para estar em forma
Nélio Pita, CM
26 de julho de 2023

Era ainda inverno quando, numa paragem da velha cidade, a poucos metros de um contentor a transbordar de lixo, um grupo esperava pelo autocarro. Começara a chover e algumas pessoas apressaram-se a procurar um canto debaixo da estrutura que as defendia da intempérie. Segundo o placard informativo o ansiado transporte já deveria estar muito próximo, mas o trânsito naquela manhã cinzenta boicotava qualquer previsão. Algumas pessoas espreitavam impacientes o relógio. Outras fixavam-se no fundo da rua, depois dos semáforos, para serem as primeiras a identificar o n. 88. Os minutos corriam lentamente até que de repente surgiu entre a neblina. A multidão apressou-se a sair da zona de proteção da chuva. Houve alguma confusão, uns empurrões. Estava cada vez mais perto. Vinha depressa. Ouviram-se impropérios durante o complicado processo de abrir e fechar o guarda-chuva. Era difícil perceber o destino. Avançou indiferente. Só alguns puderam ler «Fora de serviço».

A imagem do autocarro vazio, indisponível para acolher e transportar para outros territórios, para resgatar as pessoas de lugares de desconforto, ressurge, uma e outra vez, quando reflito sobre a situação de algumas comunidades cristãs na Europa. Os templos religiosos vistos à distância ou simplesmente observados na perspetiva de um turista, até podem ser belos, fruto de uma arquitetura engenhosa, mas tantas vezes, como um autocarro indisponível, não cumprem uma expetativa. De longe, continuam a ser símbolo da presença de Deus na história, fábricas de criatividade, motores de esperança, lugares de encontros motivados pelo amor recíproco, territórios de inquietação. Mas, quando nos aproximamos, percebemos que, em tantas situações, estes lugares são como aldeias abandonadas mesmo nos contextos urbanos. Os principais resistentes são os idosos, «o último que apague a luz».

«E quais são as causas?», perguntam. Imagino a resposta na ponta da língua de muitos crentes «é dos padres!», como que a sugerir «é necessário sacrificá-los para que esta situação se altere. Façamos a fogueira hoje mesmo!» Ainda não se deram conta de que muitos já estão queimados pelo ambiente hostil, pelo receio de serem linchados na praça pública das redes sociais por dá cá aquela palha, pelo pavor da possibilidade de serem acusados injustamente de crimes hediondos, por se sentirem usados para serviços religiosos por senhores de muitos direitos sem consciência de deveres, por terem de presidir anualmente à festa de um orago desconhecido a quem já não se tem devoção, por terem de organizar outras celebrações com poucos recursos, mantendo-as estoicamente, mesmo quando sabem que são apenas um pretexto para uma festa na terra. Muitos já estão queimados, pelo desamparo, pela solidão, mil vezes, pela maldita solidão.

Em muitos aspetos sentimos a premente necessidade de aprofundar a reforma iniciada pelo Concilio Vaticano II. A Igreja precisa de uma nova forma para responder às expetativas das mulheres e homens do nosso tempo. Como escreveu o teólogo G. Lafont (2015), a Igreja ainda não encontrou a sua forma. Ao longo dos séculos destaca-se uma forma gregoriana, uma forma tridentina, outra romana, formas certamente veneráveis, que deram frutos, mas desajustadas no presente contexto.

Este tempo de sinodalidade (palavra estranha, difícil de pronunciar e muito mais de a assumir como «modo de ser») pode e deve ser um καιρός, isto é, um momento oportuno, a ocasião certa, para desenhar essa nova forma. Mais do que conceptualizar novos dogmas ou do que dar orientações para fora de si mesma, urge sobretudo repensar a praxis em aspetos associados à sua organização. Uma reforma sobre a operacionalidade. Assim, na cessante procura de maior fidelidade ao Evangelho, é necessário rever a forma de ser Igreja em áreas como o perfil dos agentes pastorais, a linguagem, as estratégias de comunicação, os destinatários, os processos que favorecem maior participação nas tomadas de decisão, entre outros aspetos.

Sobre os agentes pastorais, o editorial da revista Tredimensioni (n. 18, 2021, pp. 232-235) reflete sobre quatro razões que fazem adoecer os líderes da Igreja. De alguma forma, estas quatro razões configuram o quadro cultural no qual muitos nós, padres, nascemos, fomos formados e motivados para exercer o ministério. Era normal. Agora, estamos mais sensíveis para compreender os riscos de estarmos associados a esta engrenagem pois, de alguma forma, conhecemos o sabor amargo dos seus frutos. Enumero sucintamente com alguns exemplos. É necessário que a reforma toque estas áreas:
1. Concentração de poder numa só pessoa como o bispo, o superior geral, o pároco. Ele tem um poder quase absoluto. Dele se espera a primeira e a última palavra. Não só que transforme o pão e o vinho na presença real de Cristo, mas também analise orçamentos, que decida se as obras são para avançar, que resolva o problema da falta de fundos, as tensões entre pais e catequistas, a afinação do coro e... é preciso reconhecer que é humanamente impossível levar a bom termo todas as responsabilidades.
2. A sacramentalidade da pessoa. Este traço era particularmente evidente na Vida Consagrada. O superior de uma comunidade era uma espécie de porta-voz de Deus. Os ungidos e investidos de cargos de responsabilidade mesmo sem grande preparação, detentores de um poder sagrado, eram dotados de um estatuo quase divino. Eram sinal de virtude e santidade. Beijavam-se-lhe as mãos e fazia-se uma profunda vénia. Para além do isolamento que esta visão idealizada suscita, ela também deu azo ao abuso de poder. Na prática, também fomentou sentimentos de aversão motivados pelo abismo entre o que era esperado e a realidade concreta.
3. Conceções distorcidas e manipuladas para legitimar certas praticas anacrónicas. Conceitos como a obediência, o sacrifício, a graça, a humildade, entre outros, fazem parte do léxico teológico espiritual de referência. São ainda utilizadas de uma forma mecânica ou para reforçar a atual situação do universo religioso: «quem obedece nunca erra»; «é preciso sacrificar-se, N. Senhor também sofreu»; «o sacramento é sempre válido, ex opera operatur (independentemente da dignidade do ministro»); «tens de trabalhar a humildade, ela a mãe de todas as virtudes». Dotados de uma graça especial, a vida sacerdotal foi chamada a ser um sacrifício perene, um exemplo de obediência incondicional, de humildade e de entrega, uma conceção que exige um elevado grau de perfeição humana, um desenho que se assemelha a um colete de forças.
4. A linguagem. A Igreja comunica através de símbolos e de uma praxis consolidada cujo sentido é desconhecido ou simplesmente fonte de mal-entendidos: para que serve uma mitra? Porquê o beijo no anel? A que propósito se utiliza uma capa de asperges digna de um museu, durante o verão, numa procissão, ou quando se reflete sobre temas como «revestir-se de Cristo»? Há claramente uma dissonância entre a mensagem do Evangelho e as suas expressões. Muitas delas são manifestações anacrónicas, símbolos de poder de outrora. Resistem no tempo talvez por vaidade, talvez por causa da inércia em promover alterações. Sei também que o homem é um ser simbólico. Precisamos de símbolos para nos exprimirmos, mas deveriam ser mais conformes ao pobre Mestre da Galileia.

Oxalá o tempo de sínodo seja de reformas estruturais e não meramente cosméticas. Rezemos para que o processo de “aggiornamento” iniciado pelo Papa João XXIII, com o concílio Vaticano II, seja levado a bom termo; rezemos para que a Igreja “esteja em forma” para corresponder às expetativas e aos anseios das mulheres e homens deste tempo.

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