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Santas ou loucas

O som do sino faz-se ouvir. Ainda é escuro. As vozes rompem o silêncio em cânticos demorados e ritmos lentos, numa oração que em nada difere daquela que durante séculos ecoou dentro das grandes abadias. O dia será pontuado com idas e vindas à capela para que, pela oração, o tempo seja santificado.

Santas ou loucas
Pe. Nélio Pita, CM
03 de novembro de 2021

Diante da mulher franzina, vestida de hábito branco coberta com um véu preto, cordão à cintura e grande medalha ao peito com a imagem de N. Senhora, o prelado reagiu de forma contundente: «esta mulher ou é santa ou é louca». Ela tinha acabado de estender sobre a mesa uma folha A4 com um esboço de uma grande casa, feito por uma mão hesitante. Era um desenho daquele que viria a ser o mosteiro da ordem, segundo a abadessa. A atitude persistente da mulher evocava a figura da viúva inoportuna do Evangelho de Lucas (18, 1-8). Ela não perdia uma oportunidade para lembrar o que deveria ser feito. «Era essa a vontade de Deus», disse serenamente. Os anos passaram e, como que por milagre, o mosteiro ergueu-se, foi pago, e hoje é habitado por uma comunidade de irmãs dedicadas à vida contemplativa.

O som do sino faz-se ouvir. Ainda é escuro. As vozes rompem o silêncio em cânticos demorados e ritmos lentos, numa oração que em nada difere daquela que durante séculos ecoou dentro das grandes abadias. O dia será pontuado com idas e vindas à capela para que, pela oração, o tempo seja santificado. Entretanto, há as atividades de cada dia, desde o fabrico das hóstias que são consumidas pelos fiéis das muitas igrejas dispersas pelo país, à produção de alfaias litúrgicas, objetos religiosos e pagelas. Há aquelas que se dedicam ao atendimento de pessoas que todos os dias, presencialmente ou por telefone, procuram um muro de lamentações. Elas acolhem as dores do mundo e colocam-nas sobre o altar da Eucaristia. Outras plantam flores e oferecem-nas, ornamentam os espaços, praticam a agricultura biológica, cozinham e limpam os espaços enquanto murmuram jaculatórias antigas. No tempo dedicado ao estudo, como um só corpo, a comunidade, ora se debruça sobre os textos sagrados, ora se aventura em autores inesperados, através dos quais especula sobre os sinais dos tempos e sobre o mundo que há de vir.

Cada mosteiro é uma nação munida de princípios e de organização interna hierárquica, em que a abadessa, à imagem daquele que a convocou para o ministério, exerce a autoridade de forma determinada e compassiva. As comunidades são imparáveis laboratórios de resistência e de espiritualidade. Os seus habitantes especializaram-se na arte de conjugar o binómio obediência e liberdade, associado à vida simples e despojada. Vivem livremente confinadas atrás das grades. São como sentinelas à espera de um grande amor. Mulheres imprudentes, testemunhos incompreensíveis, missionárias silenciosas.

Por isso, há quem as veja como pobres, tristes e alheadas da realidade. Haveria, porém, alguém capaz de suportar uma vocação se não estivesse animada pela alegria de ter encontrado um grande tesouro? Num tempo de tantos ruídos, de campanhas que semeiam o ódio, não será útil o filtro de uma regra, numa comunidade, para sobreviver? Porque não assumir um modo de vida sem a marca da agressiva competitividade que, nos contextos laborais, acentua rivalidade e exclui a fraternidade? Porque não se distanciar de uma cultura escrava de “gostos” e “adoros”?

A vida religiosa contemplativa floresce discreta e silenciosamente em contraciclo com outras expressões de vida consagrada, algumas, em especial no ocidente, em sérias dificuldades de sobrevivência. No norte de Portugal, na diocese de Bragança, Miranda do Douro, um grupo de mulheres, vindas de Itália, da secular Ordem Cisterciense da Estrita Observância (OCSO), também conhecida como Ordem Trapista, constroem um monumental mosteiro que, como quase todos os que ergueram, será um marco na região e no país. O atrevimento destas mulheres evoca a sentença de outrora: «são santas ou loucas». Contudo, através delas, a mensagem evangélica torna-se corpo que habita espaços inesperados. Nelas perdura o essencial, aquela verdade frágil e pura, que continuará a ser transmitida de geração em geração.

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