top of page

Recomeços

Se ousarmos conceder tempo a nós para nos avaliarmos e reconsiderar o que fomos fazendo, talvez arranjemos coragem para recomeçar com novo animo e nova determinação o que de novo nos é dado viver.

Recomeços
António Ribeiro
28 de agosto de 2024

Aproxima-se o final do período estival. Nele, alguns tiveram a oportunidade de cumprir o convite de Jesus: “vinde à parte, para um lugar deserto e descansai um pouco” (Mc 6, 31), presenteando-se com o tempo do ócio. Com o seu fim começam outras rotinas e outros afazeres, deixando para trás esse tempo delicioso e belo em que nos gratificámos com a presença do nosso eu profundo.

Jesus sabe que não podemos ser umas baratas tontas que se afadigam constantemente, algumas vezes, para dizermos a nós mesmos que estamos ocupados e, desse modo, fugirmos ao confronto com a verdade de quem somos. É tão tranquilizador estar-se ocupado. Quando assim é não nos ocupamos da nossa aridez, dos nossos vazios e das nossas derrotas.

Na sua eloquente pedagogia, Jesus convida os discípulos a descansar. Para Ele não só é importante o envio, mas também o regresso. É neste tempo gratuito de encontro, feito de conversa, que se partilham inquietações, se avalia o caminho percorrido e se fazem os ajustes necessários. É a fina sensibilidade de Jesus que lhe dá a perceção das necessidades do coração humano.

Se ousarmos conceder tempo a nós para nos avaliarmos e reconsiderar o que fomos fazendo, talvez arranjemos coragem para recomeçar com novo animo e nova determinação o que de novo nos é dado viver. Creio que é quando somos honestos connosco mesmos, quando nos atrevemos, mesmo com alguns medos, a ir à profundidade do nosso eu, que ganhamos fortaleza para nos olharmos com lucidez. Há de ser aí que nos aventuramos a iniciar o processo de desconstrução, para iniciar algo novo.

As comunidades cristãs começam em breve o novo ano pastoral e com ele iniciam-se as mais diversas atividades. É oportuno, agora que se recomeça, voltar ao início do Evangelho que acompanha as comunidades cristãs e pensar o que temos feito do repto que Marcos nos lançou no: “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1, 1). O pórtico de entrada deste Evangelho é um programa de vida, que pode muito bem servir para nos orientar para o novo ano pastoral.

Marcos pretende introduzir-nos desde o início na boa notícia que tem para nos apresentar. Agora é um novo começo, que nos faz lembrar aqueles primórdios em que tudo era caos e que Deus, através da sua Palavra, harmoniza e transforma em cosmos. O novo cosmos é agora decalcado por Jesus. É quando nos atrevemos a estar com Ele, quando ousamos abrir-lhe a nossa inteligência e o nosso coração, que nos iniciaremos na aliciante aventura de caminhar a seu lado, para então, percebermos que Ele é Cristo, o Ungido do Pai, que se atreveu a chamar-lhe Abbá, paizinho, numa confiança quase pueril, cheia de ternura e encanto.

O nosso perigo e o das comunidades cristãs reside no facto de já sabermos tanto sobre Jesus, que deixou de ser novidade para nós. Já O conhecemos e até sabemos o desfecho de tudo. Talvez seja oportuno e necessário a tal desconstrução, para que o recomeço possa ser feito de surpresa e com nova envolvência. É tempo de dar ouvidos a Jesus e acatar, tal como os primeiros discípulos, as suas ordens.

“E logo obrigou os seus discípulos a subir para o barco, e passar adiante para a outra banda...enquanto Ele despedia a multidão. E tendo-os despedido, foi ao monte a orar” (Mc 6, 45-46). Jesus quer que os seus discípulos façam a travessia, fá-los passar para o outro lado. Só quando somos capazes de atravessar a ponte, fazer a passagem é quando iniciamos o processo de desconstrução. Permanecer teimosamente na quietude do “sempre foi assim” é obstinadamente querer permanecer no marasmo da inércia e do comodismo. Deixar-se interpelar e desinstalar-se é aceitar o repto da mudança e permitir que se seja confrontado com a dureza da realidade.

No relato de Marcos, vemos o contraste entre dois mundos. De um lado Jesus na intimidade com Deus, orando, do outro, os discípulos remando no meio da adversidade, imersos na dura realidade. É disto que o Reino de Deus é constituído e é assim que vai sendo construído, com fadigas, mas também de encontro e silêncio.

Os destemidos permitem ser equacionados, porque sabem que não são infalíveis. Os destemidos ousam fazer a travessia, porque do outro lado há o risco de um admirável mundo novo.

Há necessidade de um novo paradigma na Igreja. Mudar não é deitar fora tudo nem abolir o seu riquíssimo património espiritual. Somos herdeiros dele e é, também ele, que nos dá identidade, no entanto, é pertinente ousar rever a linguagem, o método e a pedagogia para este tempo que nos é dado viver. O mundo mudou, a sociedade transformou-se, as pessoas têm outras motivações e a vida coloca novos desafios. A Igreja não tem apenas de interpelar, tem de se deixar interpelar. Ela não tem só algo a dizer ao mundo, tem o dever e obrigação de, em primeiro lugar, o escutar, para depois, então, oportunamente e com sensatez, fazer anúncio.

O anúncio hoje faz-se pela proximidade, pelo acolhimento, pela escuta e no silêncio. Será aí que os discípulos de Jesus serão confrontados com fragilidades e as dúvidas que acompanham o homem contemporâneo. Também é aí que terão oportunidade de contemplar potencialidades e abraçar a riqueza da humanidade.

Para que isso aconteça não há que ter medo de assumir fracassos e derrotas, caso contrário torna-se difícil mergulhar nos dramas e nas inquietações das pessoas. Quando os discípulos de Jesus se recusam a fazê-lo, vão cavando um fosso entre o mundo idealizado e a realidade que se vive. Este fosso, que se vai agudizando, está a tornar-se fatal para o pequenino rebanho de Jesus.

Queremos e precisamos de ritos, mas dispensamos ritualismo estéril e barroco; a doutrina pode dar coordenadas, mas precisamos, em primeiro lugar, de boas notícias que nos conduzam à vida em abundância e nos renovem a esperança. A lei contextualiza-nos e referencia-nos, mas precisamos, acima de tudo, de misericórdia e compaixão.

Tem importância e há necessidade da dimensão canónica da Igreja, mas a vitalidade dela e o que é verdadeiramente primordial é o Evangelho. Uma verdade tão simples e tão cândida, mas que às vezes, parece esquecida, ignorada e desprezada.

Que o recomeço não seja mais do mesmo, mas ousemos dar ouvidos a Jesus, que nos envia na barca para a outra margem, para que o novo início seja feito de criatividade, sem medo das novidades que nos esperam.

Mesa Redonda
Missão onlife:
Cultura
Sociedade
Casa Comum
Missão
bottom of page