Pintar o céu em tons de azul
Porque estamos em abril, pensei em escrever sobre o autismo. Queria escrever um hino de louvor à entrega quotidiana das famílias e dos amigos das pessoas com autismo.


Inês Espada Vieira
02 de abril de 2025
Dia mundial da consciencialização do autismo
Lembra-se de ter visto o Cristo-Rei em Lisboa iluminado de azul? E a torre do relógio, em Albufeira? Em Évora, recorda-se do templo romano sob a luz azul? E a torre dos Clérigos, no Porto? E se estava em Condeixa, em Santarém ou em Oliveira de Azeméis, viu o edifício da câmara municipal iluminado de azul?
Trata-se de um gesto sem fronteiras a que se juntam cada vez mais pessoas ou organizações: acender uma luz azul na noite de 1 para 2 de abril, uma luz que assinala o dia da consciencialização sobre o autismo – dia 2 de abril –, aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2007. Aliás, durante todo o mês de abril concentram-se várias iniciativas que pretendem chamar a atenção para as perturbações do espetro do autismo e para o modo como esse diagnóstico condiciona a vida de tantas famílias. As pessoas autistas não são eternamente bebés, têm modos diferentes de ver o mundo, maneiras diversas de o percecionar; não é uma ausência, um alheamento, um desinteresse. Ter uma perturbação do espetro do autismo influencia a vida da pessoa e da sua família, mas o que que verdadeiramente impõe limites são a inação, a indiferença, o julgamento, a falta de compaixão.
Porque estamos em abril, pensei em escrever sobre o autismo. Queria escrever um hino de louvor à entrega quotidiana das famílias e dos amigos das pessoas com autismo.
Escrever um hino é um exercício criativo, usando fórmulas mais ou menos conhecidas (não por isso mais fácil, claro); louvar é um exercício de gratidão, usando palavras também mais ou menos conhecidas (não por isso menos sinceras, claro).
Nesse hino de louvor eu diria como me impressionam os sacrifícios do dia-a-dia, a persistência do caminhar, a confiança no futuro.
E certamente diria também que me comove a gargalhada despropositada, o tom de voz que sobe sem os constrangimentos do convívio formal, a força do puxão insistente para outro espaço, a repetição metódica do mesmo gesto e da mesma palavra, o choro escandaloso que chama a atenção sem piedade. Sim, comove-me.
E penso que olhar o outro deve comover-nos. Comover-nos tanto como assustar-nos, como envergonhar-nos, como questionarmo-nos, menos sobre o autismo e mais sobre nós mesmos: uma sociedade que julga, que por vezes se esconde na normalidade, que se disfarça de boazinha e que foge, foge da realidade anormal que é, afinal, a normalidade vital de tantas famílias.
Queria escrever um hino, mas a verdade é que não vejo poesia ou outra literatura na vida das pessoas com autismo, ainda que certamente – porque é sublime criação humana – tantas vezes a poesia e outra literatura, sim, tenham visto o autismo.
Lembro-me bem do modo como Encontro de irmãos, o filme de 1988 protagonizado por Dustin Hoffman e Tom Cruise, marcou a minha geração. O irmão autista do filme é um prodígio com os números, faz complicadas contas de cabeça, memoriza cifras infernais e é um adulto doce, como uma criança. Na vida de muitas famílias a história não é bem esta. Não há poesia, não há prodígio. Ou melhor, não há outra poesia, nem outro prodígio que não o dos sacrifícios do dia-a-dia, o da persistência do caminhar, o da confiança no futuro.
A "prestação social para a inclusão" e o "modelo de apoio à vida independente", entre outras iniciativas, são cruciais na promoção de uma sociedade melhor e mais justa para todos porque, de facto, apesar das grandes e positivas mudanças de Portugal nos 50 anos de democracia, as pessoas com deficiência não sentiram a mesma melhoria de condições de vida e de esperança de realização, individual e coletiva, que os restantes portugueses.
O Estado tem de dar respostas, mas a maior resposta deve ser da sociedade, que fazemos todos juntos em gestos concretos de aproximação e de empatia.
No filme, o realizador pôde decidir um final feliz. Na vida, podemos decidir um final feliz, enveredar por um caminho de aventuras que nos permita encontrar modos de sermos melhores, de convertermos os nossos receios em generosidade.
A luz azul que invoca as pessoas com autismo não se acende apenas um dia por ano. Ela acende-se todos os dias simbolicamente nas atitudes concretas do acolhimento da diferença, qualquer que ela seja. E acende-se também na certeza de que é preciso procurar chegar ao outro, estender-lhe a mão, estar presente ao seu lado na luta nada lírica, muito concreta, do direito a ser feliz.
Com os pés na terra, inspiro a primavera cheia de futuro, dirijo o olhar para o horizonte e oiço o refrão de uma música dos Rádio Macau: Ai eu já pensei mandar pintar o céu/ Em tons de azul, pra ser original/ Só depois notei que azul já ele é/ Houve alguém que teve ideia igual.
Este texto é dedicado à Alexandra