Perguntas, pessoas e alegria
Até bem entrada na idade adulta, nunca me tinha colocado questões relacionadas com uma espécie de dicotomia entre empenhamento cívico e fé. Nem para dizer que se relacionam, nem para os ver como compartimentos estanques.
Inês Espada Vieira
12 de junho de 2024
As minhas memórias mais antigas da política são uma pergunta e uma festa. A pergunta era uma preocupação permanente na minha cabeça de criança nascida em 1975: “Mamã, o que é a liberdade?”. A festa é a da vitória de Mário Soares em 1986. Eu tinha 10 anos e lembro-me tão, tão bem dessa noite.
Poderia acrescentar a estas memórias muito concretas, os nomes que pontuavam os noticiários na televisão e as primeiras páginas dos jornais, que lia nas pichagens dos muros da Estrada da Luz em Lisboa, nos cartazes colados nas paredes e nas caixas de eletricidade: Soares, Sá Carneiro, Cunhal, Lurdes Pintassilgo, Eanes.
Agora, pensando bem, acho que estas três dimensões são fundamentais na construção de uma cidadania ativa, fundamental para a qualidade da democracia: perguntas, alegria e pessoas.
Creio, também, que estas dimensões têm tudo a ver com o próprio testemunho da nossa fé cristã. Saber dialogar (ouvir, sobretudo) e fazê-lo com a alegria seminal de anunciadores da Boa Nova.
Em casa, jantávamos sempre a ver o telejornal e estávamos presentes quando os meus pais recebiam família ou amigos, e conversavam sobre política. Até pela profissão do meu pai, jornalista, a vida pública e os importantes debates de uma democracia jovem e em construção, eram presença constante na família.
Na escola também; em toda a sua pluralidade. Lembro-me da formação em lavoures que a professora primária dava às meninas nos intervalos da escola, da militância monárquica da professora de História do 2.º ano do Ciclo nas aulas, mas também da escolha cuidadosa dos textos de poetas contemporâneos da professora de português do 9.º ano. E das redações sobre a Liberdade.
Os recreios das escolas onde andei, a escola primária n. 120 e a C+S Delfim Santos, eram sociedades plurais, heterogéneas, formadas pela história do País e pelas histórias vitais de cada um: de Timor-Leste ou de Angola, de Lamego ou de Penedono, de Benfica ou Carnide.
Aos sábados tinha catequese na Garagem. Os mais antigos fregueses de São Tomás de Aquino ainda hoje dela falam com nostalgia: mais do que um lugar, um espaço-tempo mítico em que nos formávamos ao mesmo tempo que o “País ainda por dizer” dos versos de Manuel Alegre.
Até bem entrada na idade adulta, nunca me tinha colocado questões relacionadas com uma espécie de dicotomia entre empenhamento cívico e fé. Nem para dizer que se relacionam, nem para os ver como compartimentos estanques.
Para mim, sempre foi mais ou menos evidente onde me situava, como cristã e como jovem militante de esquerda. No dia em que fiz 15 anos, fui à Rua do Salitre entregar a minha proposta de adesão à Juventude Socialista.
É certo que vivi na pele (sem dramas e sem traumas, sempre com a dose certa de presunção adolescente) ser vista como uma espécie de ave rara: uma católica praticante nas reuniões semanais na secção da JS de Benfica e São Domingos, e uma socialista nos encontros de jovens da Paróquia do Calhariz de Benfica. Com o mesmo empenho com que saí mais cedo de um retiro para ir a um encontro de jovens no Largo do Rato, com o Sec. Geral, António Guterres, passei o serão do meu 18.º aniversário numa reunião da IV Vigararia, na Igreja das Furnas.
Ser uma católica de esquerda é fruto de um caminho vital e está cheio de pessoas, de perguntas e de festa. Não é o único caminho, nem é caminho de uma só via.
A vitalidade da nossa Democracia faz-se da riqueza de diferentes experiências e projetos, de visões e de propostas distintas. Os quase 50 anos de história democrática em Portugal são disso uma prova que nos deve deixar orgulhosos a todos. As diferenças são salutares e a vida política é feita de tensões produtivas.
Por isso queria destacar a importância, mais crucial do que nunca (sim, é uma frase que repetimos permanentemente e com urgência), do nosso sistema democrático. Como sistema plástico, moldável, ele está sempre em construção, à procura da melhor versão de si que é, afinal, uma procura que acompanha a nossa demanda: a melhor versão de nós mesmos.
Jesus foi um homem do seu tempo, que viveu plenamente a sua vida pública, e falou (e escutou!) os seus contemporâneos. Jesus fez aquilo a que chamamos ler os sinais dos tempos e do contexto. Aliás, Jesus não só interpretou o momento, como propôs mudanças inesperadas, tanto individuais como para a comunidade.
Como católicos, pede-se-nos exatamente o mesmo hoje: procurar entendê-la e agir sobre a nossa realidade.
Agimos – na discussão à mesa do jantar, na reunião de pais, na escolha do voto – procurando seguir a nossa consciência, mas sabendo que a consciência individual não pode ficar fechada sobre si mesma, numa arrogância cega e infértil. Temos de saber convocar em cada momento diferentes variáveis, deixar-nos ser permeáveis a distintos dados de uma realidade complexa e em que nunca – nunca! – devemos descentrar-nos do essencial: o amor ao próximo, o cuidar do outro.
Se concentramos a nossa atividade cívica no voto, esse momento pode ser um momento entre o anódino e o difícil. Mas a participação cívica joga-se no exercício permanente de uma cidadania ativa de que os católicos não se devem alhear, nem podem deixar que os excluam (e neste caso, falo em concreto sobre os católicos à esquerda na vida política nacional).
Nas decisões, fáceis ou complicadas, procuro ter sempre como pano de fundo uma visão evangélica da vida. Recordam-se das três dimensões que referi antes? Pessoas, perguntas e alegria.
Agora, destaco as pessoas.
Quero uma sociedade que não exclua, que acolha todas as realidades. As realidades das pessoas são o lugar da política, como sempre foram o lugar do Evangelho. Estas realidades, imperfeitas, desfeitas, que sentimos às vezes até como violentas ou provocadoras, são um permanente desafio à fraternidade vertida em visão política.
Quero uma sociedade para todos, com ajudas concretas, “principalmente [para] os que mais precisarem”. Ouvimos na nossa terra o clamor dos pobres?
Quero um País sempre à procura da melhor versão de si: solidário, corajoso, comprometido.
Penso na ação pública e na linguagem que usamos como uma exigência permanente em dois domínios plurais: ser e estar, e falar e ouvir. No seu último livro publicado em Portugal, A arte de viver em Deus (Paulus, 2021), Thimoty Radcliff, OP escreve: “A linguagem precisa de se enraizar na arenosa particularidade das coisas, mantendo firmes os nossos pés no terreno da experiência. Pregadores que falam do amor ou da liberdade abstratamente estão muito distantes do confuso ofício de amar outra pessoa (...)."
A liberdade, a alegria e o amor vivem-se no concreto.