Os Pobres, Protagonistas do Caminho da Igreja
A caridade cristã não é mais uma coisa a fazer, mas o modo como fazemos todas as coisas. Trata-se do estilo cristão que encontra a sua raiz, fonte e concretização plena na paixão, morte e ressurreição de Cristo
Pe. Sérgio Leal
20 de novembro de 2024
No passado dia 17 de Novembro, a Igreja assinalou o VIII Dia Mundial dos Pobres. Esta jornada de contemplação, oração e ação é uma oportunidade para a Igreja redescobrir a sua identidade e missão como lugar de acolhimento, ternura e bondade. A Igreja, nascida do coração de Deus, inaugurada em Jesus Cristo e vivificada pelo Espírito Santo, constitui-se como povo que caminha à imagem da Santíssima Trindade. Sendo a Trindade Santíssima mistério de amor e comunhão, a Igreja é chamada a redescobrir a sua identidade e missão neste amor superabundante de Deus que acolhe a todos e, quando tiver de fazer uma opção, fará sempre a opção do Mestre que acolhia os pobres, comia com eles e lhes apontava o caminho da salvação.
A opção preferencial pelos pobres, mais do que uma opção, é uma exigência evangélica que sintoniza o agir da Igreja com o agir de Cristo que «passou pelo mundo fazendo o bem» (Act 10,38). A Igreja do século XXI saberá ser resposta para os homens e mulheres de hoje se for capaz de se constituir como uma Igreja Hospital de Campanha que se coloca no meio dos seus filhos e filhas, para ser uma Igreja Samaritana, que cura as feridas da humanidade com «o óleo da consolação e o vinho da esperança».
O título deste texto foi retirado do quarto ponto do Relatório de Síntese da Assembleia Sinodal de Outubro de 2023. A atenção aos mais pobres e marginalizados foi um tema debatido na assembleia sinodal com firme insistência, de tal modo, que um dos grupos de trabalho constituído pela Secretaria Geral do Sínodo tem precisamente este tema «a escuta do grito dos pobres».
Na verdade, o grito, tantas vezes, silencioso de tantos homens e mulheres que vêm a sua dignidade ferida não pode ser ignorado pela Igreja que tem a missão de fazer suas as dores e feridas da humanidade. Tal como declarou Jesus a Nicodemos: «Deus amou de tal modo o mundo, que entregou o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que nele crê não se perca, mas tenha a vida eterna» (Jo 3,16). O amor descendente de Deus, através do qual Deus abre as suas entranhas divinas, transborda sobre a humanidade como luz, promessa e amor. Este amor apaixonado leva em si a força provocadora do chamamento, que convida a uma resposta como exigência e possibilidade de plenitude.
Este modo apaixonado com que Deus ama, não nos permite amar o mundo de outro modo. Amados por um Deus que na Cruz se oferece à humanidade como plenitude de amor e de graça, impele-nos a amar deste modo apaixonado e gratuito. O mundo não é um inimigo a combater, mas um lugar a transformar pela força do amor que se faz caridade como encontro e proximidade. Esta marca identitária de Deus - «Deus é amor» (1 Jo 4,8) – converte-se na marca identitária de todos os batizados: «nisto todos reconhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros» (Jo 13,35). É este amor agápico, caridade feita serviço, que permite vencer a globalização da indiferença e está na origem da opção preferencial pelos pobres, que mais do que uma opção é uma exigência da fé cristã que nos impele a amar a todos, mas que nos alerta desde já que na hora de fazer uma opção, segundo o Evangelho, ela será sempre pelos pobres de todas e qualquer pobreza e pelos que perdem vez e voz num mundo a tão alta velocidade.
A caridade cristã não é mais uma coisa a fazer, mas o modo como fazemos todas as coisas. Trata-se do estilo cristão que encontra a sua raiz, fonte e concretização plena na paixão, morte e ressurreição de Cristo, tal como afirmou o Papa Bento XVI, na Encíclica Deus caritas est: «é na contemplação do lado trespassado de Cristo de que fala João, que o cristão encontra o caminho do seu viver e amar» (DCE 12). A contemplação do lado aberto de Cristo faz de cada batizado individualmente e em comunidade uma testemunha comprometida deste amor que não exclui ninguém; não permite qualquer forma de marginalização, nem consegue viver indiferente a qualquer forma de pobreza.
O mandamento novo do amor não é um duplo mandamento que se traduz num amor a Deus e no amor ao próximo, mas um único mandamento que possui uma dupla direção: um amor absolutamente centrado em Deus e universalmente alargado aos irmãos. Além disso, o amor aos irmãos não é uma consequência do amor a Deus, mas o lugar onde o amor a Deus se torna operativo e se concretiza de modo efetivo: «Se alguém disser: «Eu amo a Deus», mas tiver ódio ao seu irmão, esse é um mentiroso; pois aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê» (1 Jo 4,20).
Esta caridade que se faz serviço por amor não pode ser na vida da Igreja um refrão inconsequente, nem tampouco uma mera inclinação ou manifestação de boa vontade, mas um estilo identitário do nosso ser cristão que implica uma verdadeira conversão pastoral e comunitária, numa atenção cada vez maior a todos a quem a Igreja é chamada a evangelizar.
A reflexão sobre «os pobres como protagonistas do caminho da Igreja» deve, assim, ser inscrita neste horizonte da vida cristã e no caminho sinodal que a Igreja é chamada a viver. A sinodalidade traduz um estilo eclesial onde manifestamos ao mundo a beleza de caminhar juntos e este «caminhar juntos» não pode permitir excluir ninguém, muito menos aqueles que são os preferidos do Senhor e com os quais Ele se identificou: «sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes» (Mt 25,40).
Este caminhar juntos, que torna operativo o estilo sinodal, impele a Igreja a ir ao encontro dos pobres e a fazer deles não destinatários da nossa ação, mas protagonistas da ação eclesial, interlocutores do nosso caminho eclesial, libertando a nossa ação de uma perspetiva meramente assistencialista e fazendo dela, ainda que sem proselitismo, uma verdadeira ação evangelizadora.
O Relatório de Síntese da Conferência Episcopal Portuguesa na fase de escuta deste processo sinodal sublinhava que o cariz sócio-caritativo da Igreja é uma das dimensões que confere à Igreja uma visão positiva aos olhos da sociedade, por aparecer na linha da frente na defesa dos mais pobres e na promoção de uma vida digna e com qualidade, alcançando locais que outros setores da sociedade não conseguem, missão habitualmente desempenhada sem desejo de protagonismo mediático. Destaca-se o papel relevante nas áreas da educação, saúde e apoio à terceira idade, e a sua presença humanizadora nos momentos mais difíceis na vida de um indivíduo, acompanhando-o no luto e gestão da dor. Mesmo, reconhecendo esta missão e papel imprescindíveis da Igreja, este relatório reclamava uma Igreja que dê voz às minorias e estabeleça um diálogo com as periferias, sobretudo, aos que estão mais próximos de nós, denunciando a pobreza e apoiando os pobres, valorizando o que é essencial a uma vida digna e dando maior atenção aos recursos do planeta que, como sabemos, são finitos.
Portanto, neste caminho sinodal a opção preferencial pelos pobres não foi um tema marginal, mas encontrou um amplo eco desde a escuta nas Igrejas Locais, até ao Instrumentum Laboris quer da Assembleia Sinodal de Outubro de 2023, quer de 2024. O Documento Final da Assembleia de Outubro de 2023 dedicou um número a esta temática, mas o Documento Final da Assembleia de 2024, ainda que não tenha dedicado nenhum número em concreto a esta temática, refere este tema, de modo recorrente, sendo possível identificar 19 ocorrências diretamente ligadas a esta temática.
Portanto, pode afirmar-se que neste caminho sinodal a opção preferencial pelos teve um lugar importante que não pode ser descurado em nenhum processo de aplicação sinodal que as Igrejas Locais e as comunidades são chamadas a implementar.
A pobreza é um conselho evangélico e, na Igreja, são muitos os que professam este voto. Não é a pobreza para a qual a sociedade relega tantos dos nossos irmãos, sujeitando-os a condições de vida que fere a sua dignidade, mas a pobreza abraçada com toda a liberdade, tal como Jesus Cristo «que sendo rico se fez pobre para nos enriquecer com a sua pobreza» (2 Cor 8,9). Reconhecer que «os pobres são protagonistas do caminho da Igreja» implica olhar para os pobres não como destinatários da nossa ação, sem qualquer cisão entre «nós» e «eles», mas como irmãos e companheiros de caminho.
Por isso, é urgente exercitar a escuta, conscientes que somos chamados à «escuta de Deus, até ouvir com Ele o grito do povo; escuta do povo, até respirar nele a vontade a que Deus nos chama» (Papa Francisco).
O relatório de síntese alerta para o cuidado e atenção a todas as formas e tipos de pobreza, chamando a atenção para as novas formas de pobreza produto das guerras e do terrorismo. Além disso, recorda que a par das múltiplas formas de pobreza material, não devem ser esquecidas as diversas formas de pobreza espiritual. Uma contemplação do outro na integralidade do seu ser, num cuidado holístico de cada homem e de cada mulher, permitirá traduzir este estilo eclesial sinodal que nos impele a caminhar juntos e nos revelará o sentido mais pleno da bem-aventurança evangélica: «Bem-aventurados os pobres em espírito» (Mt 5,3).
Importa, ainda, sublinhar que a caridade é tarefa de todos e a existência de tantos grupos eclesiais que desenvolvem a sua ação junto dos mais pobres e carenciados não deve demitir ninguém da tarefa de ser sinal e testemunho da caridade. Pelo contrário, estes grupos, que são tantos e que tanto bem fazem, são um sinal profético e um estímulo a que todos, individualmente e comunitariamente se empenhem no cuidado dos mais pobres, numa atenção permanente ao grito, tantas vezes silencioso, de tantos irmãos e irmãs.
O documento final da assembleia de outubro deste ano propôs a instituição de um ministério da escuta e do acompanhamento. Seria bom e salutar que não se perdesse a instituição deste ministério, que permitirá retirar os ministérios eclesiais de uma concentração intraeclesial e excessivamente litúrgica e permitirá sublinhar a natureza evangelizadora da Igreja, como sinal profético de um mundo novo onde a promoção da dignidade de cada homem e cada mulher não são apenas uma utopia, mas uma realidade operante e operativa.
Termino, manifestando aminha gratidão a todos quantos integram os grupos de ação sócio-caritativa da Igreja. Há tanta caridade escondida, que no segredo de tantas casas e corações, transforma a vida de tantos.