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O que faz uma fronteira

O que faz uma fronteira são as pessoas, que ao mesmo tempo são feitas de fronteiras, interiores ou externas.

O que faz uma fronteira
Inês Espada Vieira
19 de junho de 2024

As regras de criação dos títulos permitem fugir da exigência habitual da pontuação. Nesta frase declarativa está implícita uma pergunta: o que é que faz uma fronteira? O que a torna fronteira e de que ação é agente? Há neste título uma indagação, mas são palavras que sugerem algo mais, com a força do verbo fazer.

Ando há meses às voltas com este título na minha cabeça: penso, leio, tento escrever umas linhas, interrompo o pensamento e a escrita, desisto, volto atrás.

Procuro tentar responder à pergunta implícita e completar o lugar argumental por preencher; a realidade faz acumular respostas e possibilidades: o que faz uma fronteira são os muros, as linhas de desconhecimento, as separações impostas por políticas egoístas e retrógradas; o que a fronteira faz é acentuar as divisões, aumentar os ódios, marcar as desigualdades, colocar obstáculos no caminho, impedir os sonhos.

Há na vida humana atual novas fronteiras que são barreiras. Lemo-las nos jornais, ouvimo-las da boca de quem conosco se cruza, sabemos por experiências pessoais ou familiares, conhecemo-las através da literatura: a pobreza, a fome, a falta de acesso à escola, as migrações forçadas pelo clima, a fuga da guerra, o frio, a solidão, a doença, a falta de horizontes, o desemprego, são experiências vitais que não são genéricas ou abstratas, mas que têm rostos. Os idosos, os refugiados, as crianças, os estrangeiros, as pessoas com deficiência, os cidadãos de países com regimes ditatoriais, etc., são tantas vezes protagonistas à força de histórias invisíveis.

Vivem e são a fronteira. O lugar do nada e de ninguém: a linha num mapa ou a grossura dum muro. O arame farpado enrolado em espiral, a terra árida onde nada pode crescer, uma espécie de vazio apenas preenchido pelo medo. Não falo apenas das fronteiras físicas, é evidente, embora elas sejam tantas vezes as mais óbvias.

A experiência da fronteira é hoje em dia muito marcada pelas catástrofes humanas e (ditas) naturais que assolam o nosso mundo. Não são essencialmente novas, mas são-no a suas expressões vitais, e deve ser nova (melhor, renovada) a nossa consciência delas e das pessoas que fazem a fronteira.

Uma das coisas que faz a fronteira são as pessoas. E apesar de pensar sobretudo na dureza da terra, na ausência de teto, no cheiro das latrinas, na sede e na fome, no frio, ou no silêncio de uma dor indizível, nos campos de refugiados, nas ruas noturnas das cidades, nos casebres devolutos, apesar de pensar sobretudo nisso, dizia eu, sei que as pessoas fazem da fronteira também lugares de encontro e de esperança.

Lugares mestiços de sonhos, ruidosos de culturas alegres, de combates partilhados, fronteiras sem fronteiras, onde cada um tem uma história e uma identidade individuais, mas também em que cada qual é daquele mesmo sítio, plural e pleno, de uma humanidade comum.

Embora estejamos focados nas fronteiras que estabelecem limites e fecham planos, que erguem paredes e embotam os movimentos, também houve e há fronteiras que são amplas e têm horizontes sem fim, que são atravessadas por ventos de esperança, onde há lugar para todos, onde nos é permitido ver pessoas estranhas em quem, afinal, nos reconhecemos. Não estou só a falar hipoteticamente. Penso, por exemplo, na fronteira da raia portuguesa e espanhola: que histórias de liberdade e de amor nos contam de outros tempos, em que nem a liberdade nem o amor eram livres! Penso, também, na língua portuguesa como fronteira vívida, florescente, fértil; a nossa língua como exemplo de uma fronteira que une e não é separação, onde se pode ser tantas coisas diferentes! Há muitas fronteiras que são território de beleza e de bem.

O que faz uma fronteira são as pessoas, que ao mesmo tempo são feitas de fronteiras, interiores ou externas. O que somos, onde estamos, o que temos, o que sonhamos, depende porventura menos de um lugar com nome, do que de estarmos acompanhados de quem nos quer bem, de sermos solidários com os mais pobres, de mantermos uma confiança ativa na nossa humanidade.

Lugar de cruzamento, espaço de reciprocidade, a fronteira conforma vidas e enforma-se a partir delas. Desejo que em todas as cartografias da nossa existência, possamos agir para que as fronteiras sejam experiências de pluralidade humana, cais de chegada e de partida de todos os sonhos, terra amena e sólida onde fincar os pés e, erguidos, fazer, em conjunto, caminho de vida feliz.

Mesa Redonda
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