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O início contém tudo

O pecado começa por desalinhar a confiança, a comunhão e a harmonia existente nas relações, acabando por destruir a realização do projecto divino e a vocação de todo o ser humano: caminhar juntos.

O início contém tudo
Pe. Fernando Lopes
24 de julho de 2024

S. Gregório de Nissa dizia que «aquele que ascende, nunca deixa de caminhar de início em início: nunca se acaba de começar»(1) . O Papa Francisco vê a sinodalidade como dimensão constitutiva da Igreja, isto é, como algo que faz parte da sua essência desde o início. Ora, se o início contém tudo e se o «caminhar juntos» vem desde o início, «se atraiçoas o início, atraiçoas o todo. Se o todo corre mal, é porque estás fora do mapa do início»(2) .

A Sagrada Escritura, no seu primeiro livro, em Gn 1,26-27, diz que Deus criou o ser humano, homem e mulher, à sua imagem e semelhança como ser «chamado a colaborar com Ele caminhando sob o signo da comunhão, custodiando o universo e orientando-o para a sua meta»(3) . Deus criou os seres humanos para a comunhão, não apenas com Ele, mas para todos os homens entre si.

No princípio, Deus constata que «não é conveniente que o homem esteja só; vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele» (Gn 2,18). Depois de ter criado todos os animais dos campos, todas as aves do céu e todos os animais ferozes, não encontrou auxiliar semelhante ao homem (cf. Gn 2,19-20). A resposta não estava nos animais, nem sequer em Deus. Tinha necessidade de relação, de alguém que caminhasse com ele, junto a ele. Por outras palavras, a hominização não estava ainda completa(4) . Em Gn 2,18.20, as palavras usadas, pelo autor, são «auxiliar semelhante a ele». Auxiliar, em hebraico, significa alguém que ajuda. O homem precisava de ajuda, de proteção, de auxílio(5) . A palavra Semelhante significa, literalmente do hebraico, alguém que lhe esteja defronte, que esteja diante. Isto é relevante para entendermos que todo o ser humano se realiza numa tríplice relação. Em primeiro lugar, o homem olha para o alto e vê Deus. Olha para baixo, isto é, para terra, e vê a matéria, as plantas e os animais. A realização plena é alcançada através de um olhar horizontal, que é a terceira relação. A relação com alguém semelhante. Como vimos, alguém que lhe esteja defronte, que esteja diante do homem. A perfeição da relação é alcançada através de um olhar horizontal(6) , através de alguém que se encontrasse ao mesmo nível.

“Então, o Senhor Deus fez cair sobre o homem um sono profundo; e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma das suas costelas, cujo lugar preencheu de carne. Da costela que retirara do homem, o Senhor Deus fez a mulher e conduziu-a até ao homem. Então, o homem exclamou: Esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, visto ter sido tirada do homem!” (Gn 2,21-23)

O autor usa o termo costela, que, no hebraico, indica lado, que significa igualdade, comunhão de carne e de espírito. A mulher é criada para ajudar o homem e para caminharem juntos com Deus e com toda a criação. Porém, o pecado corrompeu este projecto original:

É verdade ter-vos Deus proibido comer o fruto de alguma árvore do jardim? A mulher respondeu-lhe: Podemos comer o fruto das árvores do jardim; mas, quanto ao fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: “Nunca o deveis comer, nem sequer tocar nele, pois, se o fizerdes, morrereis”. A serpente retorquiu à mulher: “Não, não morrereis; porque Deus sabe que, no dia em que o comerdes, abrir-se-ão os vossos olhos e sereis como Deus, ficareis a conhecer o bem e o mal” (Gn 3,1-5).

O pecado começa por desalinhar a confiança, a comunhão e a harmonia existente nas relações, acabando por destruir a realização do projecto divino e a vocação de todo o ser humano: caminhar juntos. O esconder-se de Deus e o entrelaçar das folhas de figueira à volta da cintura (cf. Gn 3,7-8) são sinais de que já não estão diante de Deus, que já não caminham juntos. O Senhor baniu o ser humano do jardim e «colocou, a oriente do jardim do Éden, os querubins com a espada flamejante, para guardar o caminho da árvore da Vida» (Gn 3,24).

A partir deste momento existe o caminho, que o Homem tem de reencontrar e que o reconduzirá à vida e ao seu projecto original e originário, isto é, à re-união e comunhão com Deus(7) . Toda a história da salvação constitui o recuperar deste caminho, para o qual Deus convoca, no Povo de Israel, toda a humanidade. É precisamente este projecto original, isto é, a necessidade e a beleza de «caminhar juntos», que o Papa Francisco procura recuperar.

(1) GREGÓRIO DE NISSA, Homiliae in Canticum, 8: PG 44, 941C.
(2) ROSINI, F., A arte de recomeçar, A.O., Braga, 21.
(3) COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, A Sinodalidade na Vida e na Missão da Igreja, Roma, 12.
(4) RAVASI, G., L’uomo della Bibbia, EDB, Bologna, 40.
(5) O mesmo termo é usado 21 vezes no AT: Gn 2,18.20; Ex 18,4: «e o nome do outro era Eliézer, pois “o Deus do meu pai veio “em meu auxílio” e libertou-me da espada do faraó”»; Dt 33,7: «e Tu o proteges contra os inimigos»; Dt 33,26: «Ele cavalga nos céus em tua ajuda»; Dt 33,29: «povo protegido pelo Senhor?»; Sal 20,2: «o nome do Deus de Jacob te proteja»; Sal 33,20: «Ele é o nosso amparo e o nosso escudo»; Sal 70,5: «Tu és o meu auxílio e o meu libertador»; Sal 89,19: «O nosso escudo é o Senhor»; Sal 115,9: «Casa de Israel, confia no Senhor, porque Ele a todos ajuda e protege»; Sal 115,10: «Casa de Aarão, confia no Senhor, porque Ele a todos ajuda e protege»; Sal 115,11: «Crentes, confiai no Senhor, porque Ele a todos ajuda e protege»; Sal 121,1: «Levanto os olhos para os montes: de onde me virá o auxílio?»; Sal 121,2: «O meu auxílio vem do Senhor que fez o céu e a terra»; Sal 124,8: «O nosso auxílio está no nome do Senhor»; Sal 146,5: «Feliz de quem tem por auxílio o Deus de Jacob»; Is 30,5: «que não vos pode auxiliar nem socorrer»; Ez 12,14: «E tudo à sua volta, os seus colaboradores e as suas tropas, será disperso aos quatro ventos, e desembainharei a espada contra eles»; Dn 11,34: «Quando sucumbirem, serão poucos os que os hão de socorrer e muitos se juntarão a eles por hipocrisia»; Os 13,9b: «Só em mim está o teu auxílio!».
(6) Cf. RAVASI, G., L’Alfabeto di Dio, San Paolo, Milano, 22.
(7) Cf. SOUSA, M., «Sinodalidade e unidade no Novo Testamento», in Eborensia XXXVI/57 (2023) 120.
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