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Luz e âncora para nossa fé e esperança

Migrar ou permanecer é um direito inalienável de cada pessoa, cada família, cada povo, e está profundamente interligado com o dever dos Estados de cuidar e promover o desenvolvimento dos seus territórios, de modo que os seus residentes possam viver com dignidade.

Luz e âncora para nossa fé e esperança
Eugénia Quaresma
15 de novembro de 2023

Os conflitos armados que estouram nos diferentes meios de comunicação social, quase sempre têm por trás uma série de factos históricos que durante anos ignorámos e/ou por algum motivo não foram prioritários para a comunidade internacional.

Infelizmente esses conflitos quando analisados podem ser sinal de: má governação, regimes totalitários, mentalidades imperialistas, atitudes terroristas, factos históricos que ao longo de anos refletem a incapacidade de nos reconhecermos e nos comportarmos como bons vizinhos ou, numa perspetiva cristã, bons irmãos. Infelizmente a escassez de recursos essenciais como acesso à água potável, acesso a alimentos, também são causa de guerra, e em todos estes contextos emergem a escassez de trabalho e segurança, falta de acesso aos cuidados de saúde e/ou meios para cuidar dignamente quem deles necessita. Na escassez de vias legais e seguras facilmente instala-se a corrupção que corrói a justiça, a exploração que nos desumaniza. Na escassez de boas políticas de desenvolvimento e solidariedade, instala-se o caos e prepara-se o terreno para uma violência em crescendo.

Muitos são os conflitos, que escalam para a via bélica, ceifando vidas inocentes e são estes e outros sobreviventes que temos o dever de escutar, é esse grito suplicante que nos interpela pessoalmente, que nos tem que interpelar enquanto povos, que tem que interpelar os governantes. Que torna crucial a intervenção da comunidade internacional, nas mais diversas instâncias, que não alheia à Igreja.
Hoje estão mediatizados os conflitos nos territórios da Ucrânia/Rússia e do Médio Oriente, mas há tantos outros conflitos espalhados pela nossa Casa Comum, há tantos povos em fuga que denunciam a falta de paz em alguns países do continente africano, a instabilidade económica asfixiante em alguns países da América do Sul, a falta de horizonte para tantos jovens que se alistam em guerrilhas terroristas, a falta de sentido para tantas famílias, a falta de acesso à educação e ao trabalho em tantos campos de refugiados, a falta de acesso aos cuidados de saúde aqui mesmo na Europa, a pobreza e a miséria em tantas regiões, o deslocamento forçado, devido à expropriação indevida, de povos indígenas da Amazónia, ou a subida do mar, devida às alterações climáticas, que ameaça e concretiza o desaparecimento de países insulares no oceano Pacífico, obrigando a população a escolher entre viver ou deixar-se morrer.

Quando a vida humana se torna inviável, quando os povos não têm voz, quando as famílias não se conseguem sustentar, quando o governo não protege os seus ou não acolhe os que lhe batem à porta por estas razões, que caminho seguir? Para onde ir? Que alternativa propor? Que futuro?

A liberdade de escolher se migrar ou permanecer, tema escolhido pelo papa Francisco para assinalar o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado no passado 26 de setembro, assume diversos rostos, diversas geografias e causas múltiplas. À luz dos conflitos de hoje, torna-se evidente que esta liberdade nem sempre é respeitada, nem sempre os governantes cumprem o seu papel de proteção dos povos e promoção do desenvolvimento, nem sempre estamos à altura de cumprir o desafio da circularidade, interdependência que nos coloca a todos no mesmo mar, incumbindo-nos o dever de salvar vidas.

Migrar ou permanecer é um direito inalienável de cada pessoa, cada família, cada povo, e está profundamente interligado com o dever dos Estados de cuidar e promover o desenvolvimento dos seus territórios, de modo que os seus residentes possam viver com dignidade.

Nesta liberdade que tanto nos humaniza e que impele a escolher a vida, interpelam-nos os gestos heroicos de quem escolhe permanecer ainda que em contexto adverso. Permanecer para defender, permanecer para cuidar, permanecer para morrer na terra que se sente como pertença identitária, permanecer porque pesa a idade, a doença ou outro tipo de limitação, ou porque simplesmente falta a esperança.

Vivemos tempos angustiantes, entre a liberdade pessoal e social, entre o direito e o dever dos Estados. Levantam-se com insistência profundas interrogações: como derrubar os muros do medo e da desconfiança? Como poderemos crescer em diálogo e cooperação? Como fortalecer ou reestruturar as instâncias internacionais de modo que a diplomacia seja mais eficaz e transparente? Como podem os cidadãos estar mais conscientes, ativos e solidários? Como reparar os erros do passado e cuidar das feridas históricas?

É nos Evangelhos, luz e âncora para nossa Fé e Esperança, e no Magistério, que conduz a Igreja ao longo dos tempos, que se encontram razões para permanecer na Caridade. Estruturar a nossa narrativa, fortalecer e investir em gestos concretos que se traduzem na capacidade de ir ao encontro, de cuidar, construir pontes de entendimento e convivência, levando o Tesouro que celebramos em cada Eucaristia. Cristo itinerante por vocação, com quem aprendemos a arte da Misericórdia para com o migrante e a sua família, e de quem colhemos o exemplo do Bom Samaritano que liga as feridas e confia no estalajadeiro, para complementar a cura.

Gostaria de concluir com um convite a reler alguns capítulos, nomeadamente o capítulo VII, da Encíclica Fratelli Tutti, que nos ajudam a fazer uma leitura da realidade a partir de critérios que enquanto cristãos nos orientam e moldam. Desejo que cada leitor possa intuir pistas para a missão pessoal e comunitária a que somos chamados, o serviço da Fraternidade.

225. Em muitas partes do mundo, fazem falta percursos de paz que levem a cicatrizar as feridas, há necessidade de artesãos de paz prontos a gerar, com inventiva ousadia, processos de cura e de um novo encontro.
261. Toda a guerra deixa o mundo pior do que o encontrou. A guerra é um fracasso da política e da humanidade, uma rendição vergonhosa, uma derrota perante as forças do mal. Não fiquemos em discussões teóricas, tomemos contacto com as feridas, toquemos a carne de quem paga os danos. Voltemos o olhar para tantos civis massacrados como «danos colaterais». Interroguemos as vítimas. Prestemos atenção aos prófugos, àqueles que sofreram as radiações atómicas ou os ataques químicos, às mulheres que perderam os filhos, às crianças mutiladas ou privadas da sua infância. Consideremos a verdade destas vítimas da violência, olhemos a realidade com os seus olhos e escutemos as suas histórias com o coração aberto. Assim poderemos reconhecer o abismo do mal no coração da guerra, e não nos turvará o facto de nos tratarem como ingênuos porque escolhemos a paz.

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