Conhece-se a Deus pelos pés
Na tarefa missionária e evangelizadora é necessário «conhecer a Deus pelos pés» e dá-lo a conhecer, pondo «os pés ao caminho.
Bruno Cunha, CM
18 de outubro de 2023
Começo a escrever este artigo no dia da memória de Santa Teresa de Ávila, carmelita, que faleceu no dia 4 de outubro e foi a sepultar no dia seguinte, 15 de outubro. Isso mesmo! Isto sucedeu porque estava previsto para o dia 5 de outubro a mudança do calendário juliano para o calendário gregoriano, em vigor até hoje, proposto pelo Papa Gregório XIII para corrigir um desfasamento de cerca de 10 dias entre o tempo «real» e o tempo marcado pelo «calendário» juliano.
Curiosamente, o autor do título que escolhi para este artigo, Carlos Mesters, é também carmelita, em missão no Brasil. A sua frase parece-me adequada para falar do «mês missionário» que estamos a viver e dos muitos acontecimentos associados: a abertura do mês com a memória de Santa Teresinha, padroeira das missões, sobre quem o Papa Francisco publicou hoje uma exortação apostólica com o título “C’est la confiance” acerca da confiança no amor misericordioso de Deus, por ocasião do seu 150º aniversário de nascimento; o início do sínodo dos Bispos, em Roma, sobre a sinodalidade, que ocorre e coincide com a celebração de mais um aniversário da abertura do Concílio Vaticano II (11 de outubro de 1962); e o início da semana que nos conduzirá ao 97º Dia Mundial das Missões, instituído pelo Papa Pio XI, em 1926.
Na verdade, o que tem a ver o tema da «missão» com uma ordem religiosa (carmelitas) cujo elemento fulcral da sua espiritualidade é a intimidade divina na contemplação através da oração, razão pela qual o Papa Leão XIII afirmou que, «sem oração, nada é o Carmelo»? Talvez pela mesma razão pela qual Santa Teresinha do Menino Jesus, também ela carmelita e Doutora da Igreja, é a padroeira das Missões, sem nunca ter saído do mosteiro e tendo vivido apenas 24 anos. Isto demonstra, penso eu, que tudo depende, em primeiro lugar, de um caminho de interioridade e encontro com o Missionário do Pai, que nos envia em Missão e nos pede para pormos «pés ao caminho». É neste aspeto que a espiritualidade eminentemente contemplativa dos carmelitas ganha todo o sentido. Quem lê, por exemplo, «As moradas» (ou o «Castelo Interior») de Santa Teresa de Ávila, é convidado a fazer um «caminho» ou uma «peregrinação interior» através das 7 «moradas» que, progressivamente, conduzem o peregrino ao centro do «Castelo», onde mora Deus. A razão de ser deste caminho é, pois, o encontro de cada peregrino com Deus. De modo semelhante, Santa Teresinha fala do «pequeno caminho», através da imagem do “elevador”, que tornou célebre um dos seus muitos pensamentos inspiradores: “Procurarei buscar meios de chegar ao Céu por um pequeno caminho - muito curto e muito reto, um pequeno caminho que é totalmente novo. Vivemos numa era de invenções; atualmente os ricos já não precisam de subir escadas, pois têm elevadores para isso. Bom, eu tentarei encontrar um elevador pelo qual possa ser elevada a Deus, pois sou muito pequena para escalar a íngreme escada da perfeição. [...] Teus braços, então, Ó Jesus, são o elevador que deverão elevar-me até o Céu. Para chegar lá, não preciso crescer; ao contrário, preciso de permanecer pequena, preciso de me tornar ainda menos”.
(Santa Teresinha, História de uma alma)
O que tem, então, a vida contemplativa a ver com a missão? Como nos mostra a espiritualidade carmelita, tudo parte de uma atitude interior de peregrinos que desejam encontrar-se com o Pai e o Missionário do Pai, para, depois, e só depois, serem enviados em missão. Assim, fica mais fácil de perceber porque é que se «conhece a Deus pelos pés»!
Percorrido este caminho, estamos habilitados para um outro exercício «missionário»: confrontar a nossa vida cristã e a vida da Igreja com Jesus, regressando uma e outra vez ao Evangelho, à origem. Para este propósito inspira-nos o servo de Deus, Antoni Gaudí - arquiteto catalão autor da Sagrada Família em Barcelona e também conhecido como o «arquiteto de Deus» - que dizia que “nada é inventado, já que está escrito primeiro na natureza. A originalidade consiste em voltar à origem”. Seguindo a sua sugestão de ser original voltando à origem (o Evangelho), socorro-me de um dos muitos pensamentos inspiradores que o Papa Francisco partilhou connosco aquando da JMJ Lisboa, retirado da homilia da celebração de Vésperas, no Mosteiro dos Jerónimos. Referindo que “somos chamados a lançar de novo as redes e a abraçar o mundo com a esperança do Evangelho sem medo do tempo presente e sem nos refugiarmos em formas e estilos do passado”, o Papa evocou o episódio evangélico do chamamento dos primeiros discípulos. Convidando a um olhar mais atento para com este episódio evangélico, centrou-se na diferença de atitude dos pescadores e de Jesus. Enquanto que os pescadores tinham descido dos barcos e estavam a lavar as redes (Lc 5,2), Jesus sobe para um dos barcos e convida-os a lançar de novo as redes. A diferença de atitude é evidente: os discípulos descem, Jesus sobe; os primeiros querem guardar as redes, o Mestre quer que saiam de novo para o mar a fim de pescar. Não estaremos nós, Igreja, cansados da faina, mais dispostos a guardar e a lavar as redes, em vez de as lançar de novo, tal como propõe Jesus? Por esta razão a nossa vida deve ser sempre confrontada com a de Jesus que nos desafia constantemente a lançar as redes e a responder sabiamente como Simão Pedro: “Mestre, trabalhámos durante toda a noite e não apanhámos nada; mas, porque Tu o dizes, lançarei as redes” (Lc 5,5).
Depois da jornada missionária interior e do regresso rejuvenescedor ao Evangelho, onde o Missionário do Pai nos convida a lançar constantemente as redes e a regressar à origem, apresento um périplo final, trazendo à liça alguns dos documentos eclesiais mais inspiradores para o tema da Missão. O primeiro deles é a carta apostólica Maximum illud de Bento XV, publicada em 1919 e da qual a Igreja Portuguesa fez memória aquando do seu centenário, através de um texto com o título sugestivo “Todos, Tudo e Sempre em Missão”. Registo aqui um breve trecho desta carta apostólica: “Ainda que o Missionário seja dos mais dotados de mente e de coração (por ser completo na doutrina e cultura), se estas qualidades não são condizentes com uma vida santa, quase nenhuma ou mesmo nenhuma eficácia terão essas qualidades para a salvação dos povos; pior, na maioria das vezes causarão dano a si mesmo e aos outros”.
Vários anos depois, surge o decreto Ad Gentes, resultante do Concílio Vaticano II. O nº 6 é sintomático da urgência missionária como tarefa de todos os batizados: “A Igreja peregrina é, por sua natureza, missionária, visto que tem a sua origem, segundo o desígnio de Deus Pai, na ‘missão’ do Filho e do Espírito Santo”.
Dez anos mais tarde, em 1975, o Papa Paulo VI publica a exortação apostólica Evangelii Nuntiandi na qual, entre outras advertências, chama a atenção para algo que nos deve interpelar em plena era do digital. No nº 46 recorda-nos qual a melhor forma de transmitir o Evangelho: “E é por isto que, ao lado da proclamação geral para todos do Evangelho, uma outra forma da sua transmissão, de pessoa a pessoa, continua a ser válida e importante. O mesmo Senhor a pôs em prática muitas vezes, por exemplo as conversas com Nicodemos, com Zaqueu, com a Samaritana, com Simão, o fariseu, e com outros, atestam-no bem, assim como os apóstolos. E vistas bem as coisas, haveria uma outra forma melhor de transmitir o Evangelho, para além da que consiste em comunicar a outrem a sua própria experiência de fé?”
Em 1990, é a vez de São João Paulo II se expressar sobre este tema com a carta encíclica Redemptoris Missio. No nº 42, explana um dos pensamentos mais conhecidos e partilhados deste documento: “O homem contemporâneo acredita mais nas testemunhas do que nos mestres, mais na experiência do que na doutrina, mais na vida e nos factos do que nas teorias. O testemunho da vida cristã é a primeira e insubstituível forma de missão: Cristo, cuja missão nós continuamos, é a «testemunha» por excelência (Ap 1, 5; 3, 14) e o modelo do testemunho cristão”.
Por cá, em Portugal, a Conferência Episcopal Portuguesa publica, em 2010, uma carta pastoral com o título: “«Como eu vos fiz, fazei-o vós também». Para um rosto missionário da Igreja em Portugal”. Partilho parte do nº 12: “Sendo o mandato de evangelizar todas as pessoas a missão essencial de toda a Igreja, que, por isso, vem antes de tudo e está acima de tudo, então a missão não pode ser apenas o ponto conclusivo dos nossos programas pastorais, mas o seu horizonte permanente e o seu paradigma por excelência, a alma de toda a programação e de todos os itinerários de formação cristã. Não nos podemos mais contentar em evangelizar alguém apenas até um certo ponto. É imperioso e urgente sentir e viver a necessidade de evangelizar o outro até que ele sinta a necessidade de se transformar ele próprio em evangelizador. Chegou o tempo de se «oferecer a todos os fiéis uma iniciação cristã exigente e atrativa, comunicadora da integridade da fé e da espiritualidade radicada no Evangelho, formadora de agentes livres no meio da vida pública»”.
Para terminar, impõe-se citar também o Papa Francisco e a sua exortação apostólica Evangelii Gaudium. No nº 127 diz-nos: “é tarefa diária de cada um levar o Evangelho às pessoas com quem se encontra, porque o anúncio do Evangelho, Jesus Cristo, é o anúncio essencial, o mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, o mais necessário”. Convido ainda a ler a mensagem que o Santo Padre escreveu para o próximo Dia Mundial das Missões com o título “Corações ardentes, pés ao caminho”, inspirado no relato evangélico dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-15). Empenhado em renovar no seio da Igreja o zelo pela evangelização, propõe 3 atitudes: «corações ardentes» na escuta e meditação da Palavra de Deus, «olhos que se abrem e O reconhecem» ao partir do pão (Eucaristia) e «pés ao caminho» para proclamar a alegria de Cristo Ressuscitado, centro de toda a Evangelização.
É aqui que dou por findo este longo artigo. Do início ao fim, resumo-o desta maneira: na tarefa missionária e evangelizadora é necessário «conhecer a Deus pelos pés» e dá-lo a conhecer, pondo «os pés ao caminho!»