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As palavras ao contrário

Às portas do último mês do ano, tempo de promessas e balanços, desejo que na nossa vida quotidiana, como no quadro de Van Eyck, saibamos conversar com os amigos, com os anjos, os santos, com a Virgem e com Deus, sabendo que por vezes é preciso a coragem de virar as palavras ao contrário*.

As palavras ao contrário
Inês Espada Vieira
24 de novembro de 2021

Numa das mais belas representações da Anunciação, um quadro do flamengo Van Eyck pintado na primeira metade do século XV, veem-se a figura de Gabriel, à esquerda, e a da Virgem, à direita. A cena é representada num espaço fechado (o templo), de arquitetura românica, onde nenhum detalhe é escolhido ao acaso: as três janelas (a Santíssima Trindade) por trás de Maria, a pomba branca (o Espírito Santo) que voa ao encontro de Nossa Senhora através de sete raios de luz (os sete dons do Espírito), o tapete que invoca cenas do Antigo Testamento (confirmando a ligação do presente a uma tradição milenar), etc.

Não vale a pena aqui discorrer sobre a excelsa técnica de Van Eyck a pintar o brocado do manto do Anjo ou o azul intenso das vestes da Virgem. A obra de Van Eyck, como de tantos artistas ao longo da história da arte que é tão longa como a história da humanidade, a obra de Van Eyck, dizia eu, é um exemplo de como a matéria pode alcançar o espírito. Porventura também, um exemplo de como o espírito se guarda na matéria das coisas belas feitas pelos seres humanos.

As duas personagens não estão apenas lado a lado, estão um com o outro, os mantos tocam-se, os pés no mesmo chão, emociona-nos a felicidade do rosto do Anjo e o resguardo do olhar da Virgem.
Gabriel e Maria conversam. E escolho dizer-lhes os nomes, Gabriel e Maria, como eu, Inês, e tu, amigo ou amiga que lês estas linhas. A conversa entre Gabriel e Maria é um diálogo ao mesmo tempo diáfano e luminoso: AVE GRÃ. PLENA, diz o Anjo, “Ave, cheia de graça”. Maria responde, ECCE ANCILLA DÑI, “Eis aqui a serva do Senhor”.

De todas as minúcias, há neste quadro uma que nos inspira: a resposta da Virgem está escrita ao contrário, “de pernas para o ar”; o som daquele “sim” fundacional do novo tempo subindo aos céus para ser acolhido pelo verdadeiro destinatário da mensagem de Maria. Ela que naquele “sim” acolhia já a esperança que nunca mais nos deixou.

Às portas do último mês do ano, tempo de promessas e balanços, desejo que na nossa vida quotidiana, como no quadro de Van Eyck, saibamos conversar com os amigos, com os anjos, os santos, com a Virgem e com Deus, sabendo que por vezes é preciso a coragem de virar as palavras ao contrário.

*Texto publicado inicialmente em Revista Mensageiro de Santo António, 08 de dezembro de 2017.
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