Acompanhando a vida de mulheres refugiadas
Como todos sabemos, o trajeto migratório é duro e perigoso para qualquer migrante subsaariano, mas transforma-se num inferno para as mulheres simplesmente pelo facto de serem mulheres. Cada momento da viagem é duro e doloroso em si mesmo; implica uma cicatriz, algumas vezes no corpo, e sempre na alma.
Sor Magdalena Herrera Barranco, FC
24 de setembro de 2022
Partilho a experiência vivida no projeto Alma Vicentina(1), em que acompanhamos mulheres em situação de extrema vulnerabilidade: mulheres migrantes, possíveis vítimas de tráfico para exploração sexual ou laboral, maus-tratos, casamentos forçados ou outros delitos graves contra os direitos humanos.
Moisés estava a apascentar o rebanho de Jetro, seu sogro, sacerdote de Madian. Conduziu o rebanho para além do deserto, e chegou à montanha de Deus, ao Horeb.
O anjo do Senhor apareceu-lhe numa chama de fogo, no meio da sarça. Ele olhou e viu, e eis que a sarça ardia no fogo mas não era devorada. Moisés disse: “Vou adentrar-me para ver esta grande visão: por que razão não se consome a sarça?”
O Senhor viu que ele se adentrava para ver; e Deus chamou-o do meio da sarça: “Moisés! Moisés!” Ele disse: “Eis-me aqui!” Ele disse: “Não te aproximes daqui; tira as tuas sandarias dos pés, porque o lugar em que estás é uma terra santa.” (Ex 3, 1-5)
Quis começar com este texto do livro do Êxodo, porque nele estão detalhados os sentimentos que vivi e vivo no meu encontro pessoal com estas mulheres: a sarça ardente, a terra santa, Deus que escuta o clamor.
Vou partilhar algumas das vivências que me comoveram. Não o vou fazer na ordem cronológica em que as vivi, mas sim na ordem sequencial do trajeto migratório destas mulheres.
Quero dizer também que vou falar na primeira pessoa, mas tudo o que vou transmitir foram e são vivências partilhadas com outros, com quem orei e refleti sobre a ação de Deus em cada um destes momentos.
Como todos sabemos, o trajeto migratório é duro e perigoso para qualquer migrante subsaariano, mas transforma-se num inferno para as mulheres simplesmente pelo facto de serem mulheres.
Cada momento da viagem é duro e doloroso em si mesmo; implica uma cicatriz, algumas vezes no corpo, e sempre na alma.
A dúvida, a luta interior, a decisão, a despedida, o sofrimento do caminho, as violações, os vexames, o deserto, a solidão, o medo, a impotência, o amor, o desamor, a falsa proteção, o engano, a traição… Por tudo isto passam estas mulheres no seu infinito itinerário migratório.
Florestas de Nador
Durante certo tempo fui alguns verões a Nador, no norte de Marrocos, para acompanhar a comunidade das Filhas da Caridade que trabalha nos assentamentos de migrantes, com a Delegação de Migrações da Diocese de Tânger.
Nessas temporadas tive a oportunidade de visitar as florestas, onde sobrevivem milhares de migrantes subsaarianos, em “guetos” organizados por línguas.
Ali senti-me comovida pela presença de uma grande quantidade de mulheres e crianças que viviam longe da população marroquina. Pessoas cheias de medo, de sujidade, à intempérie, sem nenhuma proteção. Muitas doenças infectocontagiosas, tuberculose, sida, sarna, feridas infetadas, mulheres prestes a dar à luz ou no puerpério, com bebés recém-nascidos, sem higiene, sem água, com os excrementos quase à sua volta, no meio de um fedor insuportável.
Ali encontrei a minha sarça ardente, onde Deus arde sem se consumir, onde a sua presença não se esgota. Embora o fogo do insuportável queime, Deus estava presente e não se consumia. Decidi aproximar-me mais; como Moisés, disse a mim mesma: “Vou ver que milagre é este, por que não se consome a sarça.”
Ali, o Senhor, como o fizera a Moisés, chamou-me, e eu disse-lhe: “Eis-me aqui”.
E disse-me: “Descalça-te porque a terra que pisas é sagrada”. E eu acreditei nele.
E disse-me: “Escutei o seu clamor. Vai, eu te envio.”
Fronteira de Melilla: Mirelle
Numa dessas estadias com as irmãs de Nador, conheci a Mirelle.
A Mirelle era uma menina de 15 anos que vivia no monte Gurugu e que estava decidida a saltar a cerca, a cerca tripla de Melilla, que naquela época tinha seis metros de altura além dos rolos de arame farpado.
A Mirelle tinha tentado saltar a cerca nessa tarde e não tinha conseguido. Encontrei-a nas urgências do hospital de Nador.
As irmãs tinham chegado rapidamente para socorrer os feridos da cerca, e eu acompanhei-as. Havia muitos feridos espalhados pelo chão, todos a sangrar por causa das lâminas do arame farpado, todos a gritar de maneira desesperada diante da dor, de frustração e da impotência. Um vulto no fundo da sala chamou a minha atenção e de novo apareceu a minha sarça ardente.
Era Deus na Mirelle, a arder sem se consumir, com os maiores e mais desconsolados olhos que eu jamais vira, mas inexpressivos, já nem sequer se podia ver neles o desespero, a angústia, o medo, o ódio… Naquele agora, não encontrei neles qualquer sentimento. Nada, o vazio.
E perguntei-me de novo: “Como arde sem se consumir? Que mistério é este?”
De novo, como a Moisés, o Senhor chamou-me e eu disse-lhe: “Eis-me aqui.”
E disse-me: “Descalça-te porque a terra que pisas é sagrada.” E eu acreditei nele.
E disse-me: “Escutei o seu clamor. Vai, eu te envio.” E fui…
CIE de Algeciras: Loveth
No ano de 2009 comecei a visitar o Centro de Internamento de Estrangeiros (CIE) em Algeciras. Todos os CIE são lugares inóspitos, frios e injustos, são um inferno onde se vulnera aquilo que é o mais importante de uma pessoa: a sua dignidade.
Mais ainda se falamos de mulheres.
Estão detidas e quase nenhuma sabe porquê. O seu único delito é ser migrante e estar em situação irregular. A maior parte das vezes são descobertas em operações policiais em prostíbulos, ou por deambular pelas ruas sem documentação.
Ali conheci a Loveth, uma jovem nigeriana, grávida de quatro meses, fruto de uma violação nas florestas de Nador. A Loveth dizia que tinha 18 anos, mas não parecia ter mais de 16: fugidia, inquieta, abandonada, ingénua, miúda. Nos olhos, uma mistura de esperança e de medo difícil de descrever. Não sabia por que estava ali e não sabia espanhol. Comunicámos apenas com o olhar e com os gestos, partilhando o mesmo desespero e muitas lágrimas.
Conseguimos que as autoridades nos deixassem recebê-la na habitação que tínhamos preparado para atender as meninas mais vulneráveis do CIE.
Ali, depois de muita paciência, escuta, respeito, mimo, e sobretudo de muito carinho, voltámos a ver a Loveth a rir, a brincar como uma criança, a aprender a cozinhar, a ler, a falar espanhol e a comunicar sentimentos.
Com o nascimento da filha, Mery, a alegria regressou aos seus olhos, ao contemplar a sua bebé. Na alegria da vida de um recém-nascido, voltei a ver a sarça que ardia sem se consumir e voltei a perguntar: “Como arde sem se consumir? Que mistério é este?”
De novo, como a Moisés, o Senhor chamou-me e eu disse-lhe: “Eis-me aqui.”
E disse-me: “Descalça-te porque a terra que pisas é sagrada.” E eu acreditei nele.
E disse-me: “Escutei o seu clamor. Vai, eu te envio.” E fui…
Alma Vicentina
Desde 2017, já acolhemos no projeto Alma Vicentina 1782 mulheres. Voltei a descobrir a minha sarça ardente, onde Deus continua a arder, cada dia, sem se consumir.
Em particular, interpelam-me as recém-chegadas, as que acabam de desembarcar da patera, as que ainda trazem o cheiro a sal, a medo, a desengano, as que não se atrevem a levantar o olhar com medo do que podem encontrar, as que gostariam de esquecer de onde vêm e para onde vão.
Às vezes é preciso agacharmo-nos, literalmente, sentarmo-nos no chão, para as poder olhar nos olhos, para as olhar à mesma altura, porque vêm e permanecem encurvadas, com o olhar fixo na terra, envergonhadas por estarem vivas, por terem esperança. Revivem o horror das águas assassinas do Mediterrâneo, guardam ainda nos olhos os reflexos de outros céus, ao recordar alguém que ficou pelo caminho e não conseguiu chegar. Nunca saberemos…
Cada vez que chega uma mulher, o nosso serviço é acolhê-la, cuidá-la, respeitá-la, acompanhá-la, apoiá-la, fortalecê-la, incentivá-la, amá-la, enfim, para que se sinta segura, para que possa confiar e se sinta tranquila; para que descanse de tudo o que a oprime, a martiriza, a deixa atordoada e a faz desesperar.
As nossas Constituições dizem que “por um olhar de fé veem Cristo nos pobres e os pobres em Cristo”. Isto torna-se profundamente real em cada mulher que acolhemos a partir do amor incondicional que nos faz irmãs e amigas.
É uma experiência inigualável, sermos testemunhas da passagem de Deus por cada uma delas, não importa a religião que professe: muçulmana, evangélica, católica… A sua experiência de abandono ao transcendente é tão grande que se torna contagiosa, interpela-nos e desconcerta-nos.
Principalmente quando conseguem exprimir as experiências mais dolorosas, cada uma tem a sua: o deserto, a floresta, a patera, a solidão, a perda, a traição e esse longo etc. que arrastam pelo caminho. Mas cada uma tem também o seu relato do Momento de Deus, que se tornou presente, que as ama, e que as salvou e continuará a salvar do abismo profundo.
É surpreendente a confiança que as mulheres têm em Deus, representando essa fonte de companhia e de esperança de onde todas bebem durante a viagem.
Riqueza, pobreza, fome, valentia, medo, viagem, luta, cansaço, fé, injustiça, violações, maternidade, esperança – palavras que nalguns casos se contradizem e que também despertam tristeza e raiva pela injustiça e pela crueldade do ser humano.
Uma das maiores lições que estas mulheres nos dão são a coragem e a força que demonstram. Surpreende-me que entre tantas sombras, tantos medos e tanta dor, mantenham sempre viva a chama do amor por Deus, pelos seus familiares, pelas suas companheiras, até por nós, grandes desconhecidas para elas, em quem colocam toda a sua vida e esperança de futuro.
Com grande respeito por essa terra sagrada, guardo no meu coração experiências sangrantes, algumas de morte, quando a mulher não consegue desfazer-se do jugo da máfia que a persegue, que a pressiona, que a desestabiliza, e o nosso abraço não consegue separá-las desse horror.
Cada despedida desse tipo é uma morte que nos afeta e nos dói; às vezes martiriza-nos com o pensamento e a dúvida sobre se poderíamos ter feito mais alguma coisa, sobre se nos escapou qualquer coisa… e perguntamo-nos: “O que mais poderíamos ter feito?”
Outras são experiências de vida: quando a mulher confia, aceita a ajuda e, não sem esforço, começa a libertar-se, empreende um caminho de cura. Então, saltamos de alegria como a mulher que encontra a dracma perdida (cf. Lc 15 8-10).
Contamos com uma equipa maravilhosa de educadoras, assistentes sociais, advogadas, psicólogas. Grandes profissionais que contribuem com todo o seu bem fazer e, sobretudo, com amor.
Choramos com as mulheres quando nos contam as suas histórias; quando não querem ir embora, mas vão, porque são empurradas pelo medo, pelo sentido do dever para com os familiares, o vudu, a pressão, as ameaças, as dívidas que têm de saldar…
Tivemos mulheres que ultrapassaram as provações, que conseguiram sair da escravidão. Que se agarraram à nossa mão e se puseram de pé, mulheres que agora estão a trabalhar, que têm um futuro.
Juntas e muito unidas: irmãs, trabalhadoras, mulheres acolhidas, voluntárias. Cada dia somos surpreendidas perante a ação misteriosa de Deus, diante da sarça que arde sem se consumir, e perguntamo-nos: “Como é possível? Que mistério é esse?”
Ao ver a nossa surpresa, a nossa demanda constante para o encontrar, Ele segue-nos, e diz-nos, como a Moisés: “Moisés! Moisés!” E continuamos a dizer: “Eis-me aqui!”
E continua a dizer-nos todos os dias: “Descalça-te porque a terra que pisas é sagrada.” E acreditamos nele.
E continua a dizer-nos: “Escutei o seu clamor. Vai, eu te envio.”
Apesar das dificuldades, dos sofrimentos, da desesperança, dos medos, dos erros, e também dos acertos e das esperanças quotidianas que vão sendo desenhados nas próprias vidas pelas mulheres que fazem parte da nossa família, continuamos a sentir-nos enviadas porque “Eu sou” ouviu o seu clamor e envia-nos para as ajudar a sair da escravidão, para as conduzir a uma terra onde corre leite e mel (cf. Ex 3, 3).
Esta é a minha fé e essa é a minha experiência.