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Abraço

E nesse ambiente de total libertação, abriu os braços e cingiu aquele menino, filho de todos os pais e de todas as mães ausentes, com a profunda singeleza dos grandes gestos. O carinho das entregas gratuitas e genuínas. E foi um abraço do tamanho das esperanças legítimas e dos sonhos inteiros.

Abraço
João Pires Silva
29 de março de 2021

Nas raras aparições de Violeta, Hamurabi não se cansava de lhe admirar as escassas belezas que ainda conservava. Acolhia com avidez os carinhos que a mãe lhe tributava, ainda que fugazes e algo desprendidos, e procurava reter os seus aromas, conquanto húmidos de tabacos e de outras drogas. Era a sua mãe!

«E como serão os meus avós?», interrogava-se Hamurabi nos labirintos secretos dos seus pensamentos de menino.

Pois, decerto, ele também havia de ter avós. E comprazia-se em segredo: seriam com certeza já velhinhos, com cabelos brancos e rugas na face; teriam uma casa grande, com um quintal onde bicavam galinhas e latia um cão ávido de brincadeiras; haveriam de ter um quarto só para ele, com uma cama grande, uma colcha colorida e uma janela bem larga, por onde entrariam os aromas das flores e dos fenos, os sonoros trinares dos passarinhos e os raios de sol. Dali, ele poderia também ver a lua e as estrelas, nas noites límpidas e serenas. Antes de adormecer, a avó haveria de contar-lhe histórias e dar-lhe afagos doces; o avô haveria de segredar-lhe, noite após noite: «Agora ficas sempre connosco, não tenhas medo!».
Taciturno e imóvel, Hamurabi mantinha-se por horas sentado no soalho, num dos cantos da sala de convívio da Casa de Acolhimento – a Casa. Uma por outra vez, animava-se com um sorriso ingénuo provocado pelas suas fantasias, e assim se deleitava secretamente. E nessas noites não tinha medo.
Ora o imaginado avô de Hamurabi haveria de ter um olhar doce e um sorriso cativante, um abraço acolhedor e quente, gestos protectores, uma alegria genuína que cativaria todas as crianças; os seus cabelos, brancos como as suas barbas, haveriam de inspirar torrentes de confiança e de transmitir ondas infindáveis de ternura, haveria de o olhar sempre nos olhos e de o ouvir, só a ele, quando lhe contasse as suas aventuras, haveria de ser como os heróis que Hamurabi inventava, dotados de um conjunto de atributos intangíveis – bondade, alegria, sinceridade, franqueza...– que, no entanto, todas as pessoas conseguiriam ver, sentir... quase tocar.

Consumia-se Hamurabi nestes sonhos de fé sobre um futuro quase a chegar, quando a freira Luísa chamou as crianças à portaria, pois tinha chegado um benfeitor com dádivas para os meninos que estavam na Casa. E todos correram, entusiasmados. Hamurabi também integrou o grupo. Porém, ao aproximar-se do benfeitor, refreou a corrida e ensimesmou-se. Presumiu já ter visto aquele senhor, talvez numa outra entrega de bens. Desta vez, contudo, apoderou-se dele uma força estranha, de certo modo constrangedora, que o convocou para uma observação mais profunda daquela figura.
Subitamente aquietou-se, indiferente aos ralhetes da freira, para perceber melhor o visitante. Era um insólito impulso que o fascinava interiormente. Qualquer coisa que verdadeiramente não compreendia. Parecia-lhe que estava a ver o homem por dentro, enxergando-lhe os sentimentos. E à medida que ia perscrutando cuidadosamente aquela figura aprazível, perdia-se em cogitações:

Tinha barbas e cabelos brancos.

É assim. O meu avô há-de ser assim!

Denunciava um claro prazer, pelo facto de estar a proporcionar momentos de felicidade a crianças que a sociedade havia rejeitado.

É assim. O meu avô tem de ser assim!

O seu semblante irradiava uma ternura enorme e no seu olhar teimavam lágrimas iminentes.

É assim. O meu avô só pode se assim!

Personificava a insignificância do dar, ante o sublime prazer do dar-se.

É assim. O meu avô será mesmo assim!

Concluida a tarefa da recolha dos bens, Hamurabi permaneceu imóvel, como que encantado.
O homem, entretanto, usou a mão direita para massajar com violência as maçãs do rosto, provavelmente para esconjurar angústias interiores que pareciam refulgir por detrás dos óculos graduados.
Finalmente atentou na presença solitária e estática do menino e no seu olhar incisivo e perscrutador.
– Como te chamas?
– Hamurabi.
– É um nome bonito e com muito significado histórico, sabes?
Mentindo, Hamurabi assentiu com a cabecita, sem todavia despegar o olhar do seu interlocutor e sem alterar a impávida expressão de questionamento, de quase apelo.

É assim. O meu avô… !

– Não ajudaste a levar nada do que eu trouxe. Não gostaste, Hamurabi? – inquiriu o homem, dirigindo-se-lhe pelo nome e baixando-se, de modo a ficar face-a-face com o menino.
Olharam-se mutuamente com profunda veemência, quase mística; o mundo inteiro naqueles dois olhares.
O menino, sentido-se abrigado pela disponibilidade do homem, fundiu-se naquela presença e naquele olhar amigáveis e empreendeu um gesto de maior aproximação. Então, em voz arrancada daquele peito ainda acanhado, mas onde já cabiam todos os sonhos, sairam palavras cortantes, dilaceradas por uma meninice iludida e castigada:
– O que eu gostava mesmo era que me desse um abraço.
O menino pedia pouco, quase-nada, mas era apenas o que lhe faltava. Não necessitava de mais. Os seres humildes nunca pedem muito. Quaisquer outros bens ou favores que o homem, naquele momento, lhe pudesse proporcionar eram claramente despiciendos. Apenas um abraço!

O homem ficou siderado: era o esgotamento de todas as teorias, de todas os caprichos; a futilidade de todas as certezas, de todos os heroísmos; a dimensão da sua pequenez. Subitamente, apoderou-se dele um estímulo levitante que o transportou para o cume do monte das transfigurações. Pôde então sentir como o silêncio, a quietude e a alvura, podem ser verdadeiramente absolutos, inebrieantes e luminosamente absorventes. E nesse ambiente de total libertação, abriu os braços e cingiu aquele menino, filho de todos os pais e de todas as mães ausentes, com a profunda singeleza dos grandes gestos. O carinho das entregas gratuitas e genuínas. E foi um abraço do tamanho das esperanças legítimas e dos sonhos inteiros.

Depois, Hamurabi saiu a correr e a saltar. Nessa noite não teve medo; e o homem não teve sono.

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