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A longa solidão da fé

Day reconhece que a Igreja Católica, apesar dos pecados do clero, era a Igreja dos grandes santos. Era a Igreja dos pobres imigrantes que vagueavam pelas ruas das cidades ou faziam os trabalhos duros, sujos e mal pagos.

A longa solidão da fé
Pe. Nélio Pita, CM
31 de janeiro de 2024

No mapa dos itinerários de fé do século XX, evidencia-se a singularidade do testemunho da norte americana Dorothy Day. Nascida em Brooklyn, em 1897, no seio de uma família indiferente a qualquer prática religiosa, desde muito cedo, Day sente-se fortemente atraída por Deus, ao qual procura corresponder tecendo uma narrativa que é hoje reconhecida pela Igreja Católica como exemplar.

Ainda criança, alguns acontecimentos ocasionais, aparentemente irrelevantes, como o encontro com uma vizinha ajoelhada em oração, fazem-na sentir uma súbita explosão de amor. Ao contrário daqueles que lhe eram próximos, a senhora Barret tinha um Deus e havia beleza e felicidade na sua vida. A história de um santo deixa nela um «desejo de participar num empreendimento tão elevado» e, por isso, compromete-se a reparar o mal no mundo fazendo «penitência pelos seus próprios pecados e pelos pecados de mundo inteiro». A leitura da Bíblia fá-la mergulhar num ambiente de paz e de santidade que contrasta com as permanentes tensões familiares. Quando se aproxima de uma comunidade crente, deixa-se fascinar pelos rituais, os cânticos de salmos e o sentido de pertença a um grupo. Com o consentimento dos pais, mas por sua iniciativa, é batizada e confirmada na Igreja episcopaliana.

A adolescência foi para a inteligente Dorothy Day uma etapa de distanciamento do universo religioso. A visão idílica seria purgada por questões próprias da idade, em especial no ambiente universitário. Uma espiral de acontecimentos determina a desconstrução dos esquemas que tinham sido estruturantes durante a sua infância. A religião torna-se um alvo a abater porque, segundo a nova perspetiva, os religiosos estavam ao lado dos ricos e dos poderosos numa América cuja classe operária permanecia miserável. Seja pela experiência pessoal seja pela literatura que consome avidamente, Day identifica-se com os pobres e marginalizados. Assume que a sua vocação está entrelaçada na deles. E só há uma forma de transformar o que se pretende que seja estruturalmente transformado: a revolução.

Day será testemunha e promotora de uma revolução por uma maior justiça social. Primeiro, recorrerá às estratégias de uma filosofia política de orientação marxista-leninista. Mais do que pregar a mansidão e a concórdia, era necessário avivar a luta de classes para que os reféns da ganância dos capitalistas, as vítimas de racismo, as mulheres sem direitos, os migrantes escravizados, fossem tratados com dignidade. A proposta teórica para tão complexos problemas, porém, apenas agravava os conflitos e não respeitava a vocação transcendente da pessoa. Havia uma fome de algo que não era apenas de pão, de habitação, de roupa ou...

Day era uma esfomeada que, depois de uma noite em animada cavaqueira e muitos copos, procurava o silêncio da igreja de S. José, numa das ruas da grande metrópole norte-americana. Sem compreender os rituais do sacerdote, a jovem anarquista, orava em silêncio, refazendo as questões de todo os tempos, como quem bate a uma velha porta à procura de sentidos que dessem sentido à sua existência e à de aqueles que ela conhecia.

Com a maternidade, Day assume-se como crente e não só batiza a sua filha, dando-lhe o nome da grande Santa Teresa de Liseux, mas também recebe os sacramentos de iniciação cristã. Abandonada pelo companheiro e por alguns amigos por adesão à Igreja Católica, Day retoma o tema da revolução tendo o Evangelho como programa de vida. Com o carismático Peter Maurin, Day funda o Movimento Catholic Worker que se destacaria pela denúncia social e a prática efetiva das Obras de Misericórdia.

Day reconhece que a Igreja Católica, apesar dos pecados do clero, era a Igreja dos grandes santos. Era a Igreja dos pobres imigrantes que vagueavam pelas ruas das cidades ou faziam os trabalhos duros, sujos e mal pagos. Reconhece, sobretudo, e ajuda-nos a reconhecer, que o Cristo que está no meio de nós, «não é um Cristo limpinho, bem esfregado, domingueiro, mas um Cristo para os dias de semana, um Cristo com roupa remendada, um Cristo dos bairros de lata e das casas degradadas, um Cristo sem casa nem emprego, um Cristo da sopa dos pobres».

Oxalá a sua radical entrega seja uma inspiração para um modo de ser mais comprometido com o seguimento de Jesus por parte de todos os batizados.

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