A impossível banalidade do bem*
21 de Setembro de 2020, por INÊS ESPADA VIEIRA
Mesmo a quem nunca leu Eichmann em Jerusalém, livro de Hannah Arendt (Hanover, 1906-Nova Iorque, 1975) publicado em 1963, certamente lhe ressoará o subtítulo: um relato sobre a banalidade do mal. O subtítulo é a síntese da obra e da reflexão da filósofa alemã: perante os factos, o contexto e a figura de um dos maiores criminosos de sempre, o nazi Adolf Eichmann, a autora mostra-nos como o mal não é algo extraordinário ou fora de comum, mas sim, a um nível puramente objetivo, algo banal.
O pensamento filosófico, social e político do século XX ocidental nasce e renasce do Holocausto, com implacáveis questões sobre o lugar do bem e do mal nos indivíduos e nas sociedades. Nesta e noutras obras, Hannah Arendt conduz-nos na alameda de perguntas e respostas que são os vasos da nossa humanidade comum. As suas interrogações mantêm-se. Não apenas num plano filosófico e teórico, mas em permanentes perplexidades sobre o curso das pessoas e dos tempos, em experiências e relatos do quotidiano partilhado entre as nações.
Em entrevista ao jornal espanhol El País (agosto de 2017), o artista plástico e ativista chinês, Ai Weiwei (Pequim, 1957), declarou que “a humanidade está cada dia mais cobarde, perdendo a visão e a coragem”. É um pessimismo herdado da experiência que teve com os refugiados (é dele, por exemplo, a grande instalação de 14 mil coletes salva-vidas recolhidos da ilha de Lesbos, nas colunas do Konzerthaus de Berlim) mas que o artista relaciona também com a indiferença das pessoas face ao cambio climático. Para Ai Weiwei, “a liberdade e a democracia são uma luta contínua, não estão garantidas para ninguém. Enquanto houver uma pessoa desesperada, toda a humanidade está ferida, arruinada. Se não tivermos esta ideia de uma única humanidade, nunca poderemos resolver o problema”.
As declarações pessimistas de Weiwei são para nós motivo de esperança. Elas mostram que é possível uma leitura compassiva da humanidade, que é possível uma visão comum do nosso destino. As palavras de Ai Weiwei aproximam-nos uns dos outros, numa solidariedade combativa, num despojamento de individualismo para uma noção partilhada do presente e do futuro. Quando parece que estamos perdidos, pessoas tão diferentes como Arendt, Weiwei ou outros mais ou menos conhecidos e marcantes no seu tempo, mostram-nos na sua grandeza que não há banalidade no bem.
O relato de Hanna Arendt enviado de Jerusalém para a revista The new yorker sobre o julgamento de Adolf Eichmann revelou aos leitores do periódico e depois aos do seu livro um homem banal, um funcionário vulgar, um militar trivial. O epítome do mal foi, a um nível meramente objetivo, um indivíduo medíocre.
O bem, todavia, nunca, mas nunca é banal. Mesmo quando ele é feito de maneira simples, mesmo quando os gestos são prosaicos, mesmo – sobretudo – quando são parte do quotidiano discreto e desinteressado de verdadeiros heróis que nunca saberão sê-lo. No dia a dia, há pessoas que salvam vidas (literalmente), que amam o próximo ali próximo, e que amam outros de lugares distantes e desconhecidos, há pessoas que fazem o bem, generosa e silenciosamente, tomando microdecisões que abrem portas pesadas, que rasgam sorrisos esquecidos, que desenham um horizonte de claridade num lugar onde apenas havia breu.
Nos últimos meses tenho testemunhado vários desses pequenos (e grandes) milagres. São gestos e pessoas inspiradoras. Daquelas que certamente um dia alguém dirá, como de Jesus, que “andou de lugar em lugar, fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos” (Act, 10, 38).
* Artigo publicado pela primeira vez na Revista Mensageiro de Santo António em agosto de 2017