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Um santo popular sob o olhar desconcertante de Richard Strauss

Variadas podem ser as leituras efetuadas a partir desta ópera de Strauss. Contudo, uma coisa é certa: todas estas representações sobre a vida de João Batista, da mais erudita à mais popular, mostram-nos, com total transparência, que a mesma água é capaz de matar várias sedes.

Um santo popular sob o olhar desconcertante de Richard Strauss

João Andrade Nunes

30 de junho de 2021

“São João, São João, São João, dá cá um balão para eu brincar!”. Genericamente, para os portugueses, a figura de São João Batista, de imediato associada aos ditos Santos Populares, corporiza-se nos arraiais que de Norte a Sul do país tomam lugar na noite de 23 para 24 de junho.

Inicialmente de origem pagã, estas festividades que assinalavam o solstício de Verão, ao coincidirem com a natividade de S. João Batista, não demoraram a ser cristianizadas e incorporadas no calendário litúrgico cristão. Desse modo, desde tempos bem recuados, católicos, luteranos, anglicanos e ortodoxos têm celebrado, anos após ano, tal solenidade.

A história deste santo - que, não sendo português, por entre sardinhas assadas, balões e alhos-porros passou a integrar a cultura popular portuguesa na sua máxima expressão - é relativamente simples e do conhecimento geral. Se atentarmos nos quatro Evangelhos verificamos que João, ao nascer no alvor do século I d.C., tornou-se contemporâneo de Jesus Cristo. Aliás, mais que isso! João, filho do sacerdote Zacarias e de Isabel, prima de Maria, fora mesmo familiar de Jesus e por ele reconhecido como o maior entre os profetas.

Afora a importante ação evangelizadora de João Batista, a sua biografia ficaria marcada por duas factualidades que passarei a indicar a breve trecho. Primo, o batismo de Jesus nas margens do rio Jordão. Secundo, o seu martírio, ocorrido nos cárceres do palácio do rei Herodes Antipas, cujo acontecimento também se celebra, liturgicamente, a 29 de agosto.

Ao longo dos tempos foram estes episódios eternizados através da pintura, da escultura e da música. Assim, no que às artes plásticas respeita, de um modo ou de outro, enquanto transeuntes de museus ou do incrível mundo cibernético, já todos esbarrámos com a representação do nascimento de João, da autoria do mestre Jacoppo Tintoretto, com a reprodução do batismo de Jesus, pelo escultor Francesco Mochi, ou com alguma das cenas da sua decapitação nas múltiplas leituras de Caravaggio.

Relativamente à arte dos sons, na história da música ocidental, numerosas são as obras que invocam algum dos episódios supramencionados. Na verdade, quase se pode traçar uma história da música sacra através das várias composições que tiveram como ponto de partida textos alusivos à personagem joanina. Ilustrando a nossa ideia, apenas sobre a passagem bíblica de Mateus 11:11 “Inter natus mulireum” (Entre os nascidos de mulher não surgiu outro maior do que João Batista), dentro de outras, encontramos obras dos quinhentistas Josquin de Prez e Orlando di Lasso, do seiscentista Hans Leo Hassler e do setecentista Wolfgang Amadeus Mozart. De igual modo, Johann Sebastian Bach, se não mais, deixou-nos duas cantatas alusivas à festa do profeta maior: “Christ unser Herr zum Jordan kam” (Cristo, nosso Senhor, veio ao Jordão) e “Ihr Menschen, rühmet Gottes Liebe” (Povos, louvai o amor de Deus). De forma mais peculiar, podemos ainda indicar a missa e o motete evocativos da degolação de S. João do oitocentista José Maurício Nunes Garcia, o qual esteve ao serviço da corte de D. João VI, no Rio de Janeiro.

Não obstante o exposto, foi no domínio operático que veio a ser produzida a magnum opus relativa à personagem em análise. Refiro-me, logicamente, à ópera “Salomé”, do alemão Richard Strauss. É sobre ela que hoje vos quero falar.

Em 1902, Richard Strauss (que nada tem que ver as famigeradas valsas da família Strauss!) parece ter recebido uma cópia do livro “Salomé”, de Oscar Wilde, numa tradução alemã de Hedwig Lachmann. Encantado com a mesma, rapidamente encetou a sua adaptação literária e musical. Desta forma, em junho de 1905, Strauss dá à prensa aquela que viria a ser uma das mais controversas óperas do Modernismo. O motivo era óbvio. A versão ora apresentada, bastante fiel à do oitocentista Oscar Wilde, distanciando-se das versões canonizadas pelos santos Evangelhos, não só mostrava uma virgem de 16 anos que num puro ato de delírio sexual beijava a cabeça decepada de João Batista, como a própria virgem era assassinada, seguidamente, a mando de Herodes.

Logicamente, tal excentricidade, só poderia ser acolhida por uns e repugnada por outros. Com efeito, se a soprano dramática Marie Wittich, desde logo, havia recusado emprestar a sua voz à personagem Salomé, aquando da estreia, o entusiasmo do público mostrara que a sociedade se havia distanciado, de certa forma, da burguesia tradicionalista e da moral vitoriana que dominara a elite cultural do século XIX. Em rigor, a descrição explícita da líbido de uma adolescente transtornada, aliada a uma orquestração disruptiva e arrebatadora criara um certo paradoxo comportamental social: a atração pela perturbação. Só deste modo se explicam as mais de 50 produções de “Salomé” que ocorreram durante os dois anos que se seguiram à estreia.

Aqui chegados, o que nos pode dizer hoje a “Salomé” de Richard Strauss? De rompante, creio que duas ideias podem ser trabalhadas. Por um lado, a insânia de Salomé, questionando-nos sobre os limites para a satisfação de um capricho humano, mostra-nos que a sede de vingança cega e enlouquece. Por outro, no meio de tudo isto, como entender a repulsa do cruel Herodes que, em face da loucura de Salomé, a manda, de imediato, assassinar? Significará ela que há sempre um limite para a desordem, do qual despontam comportamentos capazes de repor uma certa justiça e ordem sociais?

Variadas podem ser as leituras efetuadas a partir desta ópera de Strauss. Contudo, uma coisa é certa: todas estas representações sobre a vida de João Batista, da mais erudita à mais popular, mostram-nos, com total transparência, que a mesma água é capaz de matar várias sedes.

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