Um banquete musical celeste
De um lado, voltar à música de Bach é repor a ordem das coisas. De outro, fazê-lo no tempo quaresmal é, no dizer de São João Evangelista, espantarmo-nos uma vez mais.
João Andrade Nunes
10 março de 2021
Revisitar a Paixão Segundo São Mateus é voltar a Bach. Voltar à música de Bach é, metaforicamente, repor a ordem das coisas.
O fascínio pelo universo de Bach não é novo nem particular. Não é novo porque data da primeira metade de oitocentos, aquando da redescoberta da Paixão Segundo São Mateus (BWV 244) pelo alemão Felix Mendelssohn. Não é particular porque, desde então, esse encantamento disseminou-se, sem qualquer exagero, pelo mundo.
Tal efeito este que, hodiernamente, não há orquestra alguma que não inclua nas suas temporadas e no seu repertório obras de Bach. De igual modo, jamais alguém diz ser Músico sem observar, com seriedade, o seu legado musical.
Ao ser assim, ante tão larga difusão, qual a necessidade de, uma vez mais e neste tempo, regressar a si e à sua obra? A resposta afigura-se-nos intuitiva. De um lado, voltar à música de Bach é repor a ordem das coisas. De outro, fazê-lo no tempo quaresmal é, no dizer de São João Evangelista, espantarmo-nos uma vez mais.
Foi precisamente espanto que me senti na Quaresma de 2014, quando pela primeira vez me deparei com uma peculiar interpretação da Paixão Segundo São Mateus. Não querendo, de modo algum, diminuir a imaculada leitura do notável maestro Simon Rattle, não fora pela componente musical que esta interpretação se diferenciara das demais. O seu traço verdadeiramente distintivo adviera, sem dúvida, da espantosa encenação concebida pelo excêntrico Peter Sellars.
Se, hoje, a encenação deste repertório se apresenta, grosso modo, vulgarizada, há algumas décadas tal intento era por uns verbalizado com prurido; por outros, tido como conduta quase herética. Genericamente, a justificação reside tão só no desígnio da oratória. Em rigor, é por demais consabido que nascendo como género musical religioso – ainda que narrativo –, diferentemente da ópera, não comportava encenação por se destinar a ter representação no âmbito do culto. Porém, a sociedade metamorfoseou-se e, desde o século XIX que este repertório, abandonando paulatinamente o seu habitat natural, entrou de forma laicizada nas salas de concerto. Terá perdido o seu objetivo piedoso? Talvez. Contudo, (re)adquirindo e potenciando, daí em diante, uma experimentação profundamente espiritual e difusa.
Retomando a aludida interpretação da Paixão Segundo São Mateus, pela chancela da Orquestra Filarmónica de Berlim, em tom de inconfidência recordo o venturoso dia em que, na companhia dos meus pais, me deleitei com a visualização de tal projeto musical. Lembro-me como se fosse hoje. Ao final de quase três horas de partilha de um verdadeiro banquete musical celeste, olhámos uns para os outros, fizemos silêncio e creio que pouco ou nada dissemos. Em boa verdade, nada havia que dizer. Havia sido a maior e mais profunda vivência quaresmal.
Sobre o palco do imponente auditório da Filarmónica de Berlim figurava um considerável conjunto orquestral repartido em dois blocos. De resto, como Bach idealizara. No entanto, materializando os ideais de Peter Sellars, os elementos dos dois coros, encontrando-se deitados no chão, sentados em pequenos bancos ou nas escadas, de forma inerte, rememoravam a serena aquiescência de Jesus in monte Oliveti. De forma contida, Simon Rattle estendera o seu braço direito e com ele iniciara-se, discretamente, um plangente ostinato no baixo contínuo. A este movimento viera a juntar-se uma dilacerante linha melódica que, inicialmente tocada pelos violinos, flautas e oboés d´amore, seria depois pronunciada pelo coro: “Kommt, ihr Töchter, helft mir klagen” – Vinde, filhas, ajudai-me a lamentar.
Ao longo da Paixão, os instrumentistas e os cantores, alterando as suas posições iniciais, de forma sempre minimalista, foram conduzindo o público pela narrativa e enfatizando os momentos fulcrais. Sem relegar a penetrante representação da última ceia ou a pungente passagem da condenação de Cristo, no ocaso da obra, com total serenidade, através do recitativo que precede a última ária do baixo, ouviram-se as seguintes palavras: “Am abend, da es kuhle war” – Ao entardecer, quando [o tempo] refrescou, ficou a queda de Adão evidente. Ao entardecer esmagou-o o Salvador. Ao entardecer voltou a pomba e trouxe um ramo de oliveira em seu bico [...]. Após o recitativo, em clima bucólico e confiante, o baixo encerrara a narrativa: “Mache dich, mein Herze, rein” – Purifica-te, coração meu, eu mesmo vou sepultar Jesus. Para que em todo o sempre Ele permaneça em mim e descanse tranquilo. Que todos deixem entrar Jesus.
A música de Bach havia entrado no mais íntimo de todos os que tinham acabado de assistir àquele concerto. Indubitavelmente, aplanara as veredas para que Ele permanecesse e pudesse descansar tranquilo.
A obra de Bach, tal como as palavras de Cristo, é enigmática e paradoxal. Metaforicamente, é uma sumptuosa catedral gótica que nos esmaga. Faz-nos sentir pequenos. Porém, concomitantemente, é uma catedral que, através das suas misteriosas ogivas e abóbodas, orienta o nosso olhar para o alto. Eleva-nos e torna-nos esperançosos de um dia alcançarmos O Lugar Supraceleste.
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