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Sentados na soleira

Tantas vezes passava esta soleira e só quando lá me sentava conseguia usufruir totalmente deste vazio no meio das pedras, empilhadas com a sabedoria das mãos – não apenas pelo espaço que aí descobria, mas também por me permitir contemplar ao mesmo tempo, e com um pé de cada lado, dois mundos tão diferentes.

Sentados na soleira

João Valério

13 de abril de 2022

Estava um dia de sol magnífico, entrecortado pelo agitar suave da sombra coada pelas folhas da árvore em frente. Era uma pedra grande, comprida, que ocupava toda a soleira da porta, de um lado ao outro. Uma peça única, de um granito com tons discretos de cinza e ocre, com micas brilhantes a espreitar na textura rude. A pedra, quente de sol, convidava a parar naquele limiar e apreciar a espessura da parede, um limite sólido e pesado. Dois mundos, duas temperaturas, dois reinos de olfactos.

Do lado de fora era impossível não se sentir o calor, mas também o cheiro da terra húmida atravessada pelo regato que ia evaporando nas horas da manhã, misturada com os aromas do alecrim, da hortelã, do cheiro fresco da horta. No outro lado, no interior, a penumbra destacada das madeiras vetustas e simples, da toalha que pendia da mesa, a massa deixada por uns instantes a repousar de onde se soltava o perfume agridoce da farinha com fermento, num silêncio intercalado com o suave ranger ocasional do soalho. Tantas vezes passava esta soleira e só quando lá me sentava conseguia usufruir totalmente deste vazio no meio das pedras, empilhadas com a sabedoria das mãos – não apenas pelo espaço que aí descobria, mas também por me permitir contemplar ao mesmo tempo, e com um pé de cada lado, dois mundos tão diferentes.

Preparamo-nos para celebrar uma soleira do tempo, aquela que nos faz todos os anos reviver o mais importante limiar de mistério – o da passagem de Cristo da morte à vida, tão significativamente acompanhado pelo renascer da natureza depois de longos meses de repouso. É uma viagem que todos os anos revisitamos, pela centralidade que tem na nossa vida, uma porta que cruzamos na luz da Vigília Pascal.

Este ano – e antes de a cruzarmos novamente – sentemo-nos um pouco nesta soleira para apreciar o que está de um lado e do outro, antes e depois. Apreciar o infinito que está contido entre o Alfa e o Ómega. Às vezes vamos com tanta pressa em abrir a porta, passar e fechá-la atrás de nós, que nem nos apercebemos que podíamos ter-nos sentado por uns instantes a contemplar esta passagem da sombra para a luz, a Páscoa.

Fotografia de capa do artigo: Espigueiros – Fotografia de Manuel Maceira – Licença Creative Commons CC BY 2.0

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