Onde a terra se acaba e o mar começa
As viagens são sempre uma forma de autoconhecimento, de descoberta do outro e do mundo. São puro entretenimento ou fonte de cultura que, uma vez aberta, jamais voltará ao ponto de partida. O relato de viagem tem acompanhado todas as minhas formas de evasão, seja física ou meramente psicológica, mas é imperativo o registo das impressões, das sensações, das experiências que cada lugar nos pode proporcionar.
Maria da Luz Coelho
14 de agosto de 2024
Nunca Camões imaginou que este seu verso épico pudesse ganhar um significado tão intenso nas minhas viagens para lá do mar. Num extremo diferente do do poeta, coloco-me com um pé na terra e outro no mar, na mais extraordinária e fantástica viagem que já realizei.
Na verdade, não me defino como uma pessoa aventureira, que gosta de experiências novas, diferentes, singulares. Sou até bastante previsível e quem me conhece sabe que as surpresas não fazem parte do meu dia-a-dia. Mas a viagem que aqui relato superou todas as expectativas pelo fascínio, pelo prazer da descoberta, pelo estímulo dos sentidos como nunca havia experimentado. Ali, onde a terra se acaba e o mar começa, deixei a Europa rumo a Marrocos numa fria e chuvosa noite de abril.
Dia anterior à partida:
Preparo tudo com cuidado, mas sem grandes expectativas. Gosto de saltos altos, de vestidos e saias, de roupas incompatíveis com a minha aventura. Sem desanimar, procuro os mais práticos apetrechos e, num ápice, tenho a mala feita. Coisa estranha numa senhora. Os indícios não me parecem bons…
Dia 1
Começa mal, esta aventura. A chuva, o vento e a forte ondulação impedem de sair à hora combinada. Só já me apetece voltar para trás. Nas longas horas de espera para que o mar amainasse, encostei o corpo nuns bancos desconfortáveis que ali se encontravam e que já teriam servido de cama a muitos dos que se viram nestas lides. Uma longa espera numa noite de breu. Finalmente, quando o dia começa a raiar, coloco-me na fila para o barco que me irá levar ao destino. As caras dos que vão à minha frente são como a minha e as de todos os outros que me seguem: uma indisposiçãozinha que não consente conversas de tipo nenhum. Parti e, sem dar conta, o primeiro dia de cinco já estava a acabar e eu sem nada para contar.
Dia 2
Estou em Marrocos, a terra que mais desafia os sentidos. Os cheiros e as cores impressionam qualquer um e eu sinto que cheguei a um lugar inimaginável. A magia da viagem começa em Chefchaouen, a cidade azul que quase me faz pensar que o céu desceu aqui e nunca mais se quis erguer. As ruas estreitas com as suas casas caiadas de azul fazem desta cidade um lugar desejado. É uma cidade tranquila, calma, serena. Em todas as ruas tingidas de azul há um beco perfeito para uma fotografia. As suas gentes são simpáticas. Percorri todos os cantos da cidade e os moradores deixam-me caminhar sem nenhum tipo de assédio. Andei sem pressas o tempo suficiente para que o azul me ficasse na retina.
À noite, já estava em Fez – a misteriosa e caótica Fez! Mal chego, sou logo surpreendida por uns sons que me inquietaram. Não posso dizer que tenha gostado. Quis saber o que se passava e alguém me explica que, cinco vezes por dia (à noite, antes do sol nascer, ao meio-dia, durante a tarde e depois do pôr-do-sol), ouve-se o chamamento dos fiéis a partir dos minaretes das mesquitas. Fez é onde o apelo à oração mais sensibiliza, com as vozes vibrantes a pairar sobre a cidade. Num misto de repulsa e de vontade de saber mais, levanto-me às 5 da manhã para presenciar novamente este espetáculo.
Dia 3
Dia dedicado a passear e a conhecer Fez. É uma cidade impressionante, com as suas ruelas labirínticas, cheia de surpresas a cada curva. É o dia certo para uma verdadeira incursão nos mercados a céu aberto onde há praticamente tudo a ser vendido, desde tâmaras a animais para o abate, tapetes a produtos em couro. Pasmei-me ao ver as peles a serem tingidas nos degraus das ruelas e as favas e o grão de bico a serem cozidos e posteriormente vendidos como petiscos na rua, tal como as castanhas por cá.
Neste emaranhado de ruelas estreitas cheias de pessoas, onde tudo se transporta com a ajuda de burros, carrinhos de mão, bicicletas ou motas, o que mais se ouve são gritos de “Balak!”, que significa “Cuidado!”. O melhor é desviarmo-nos para deixar passar. A hora mais concorrida nos “souks” (mercados) é ao anoitecer, altura em que uma grande parte da população sai de casa e os vendedores ambulantes regateiam os seus produtos (fruta, peixe, pão, louça, de tudo um pouco). Aqui, ganhei o que se pode chamar de “skills” na arte de regatear. É que nada tem preço, tudo é negociável e só depois de uma discussão sobre o valor e a utilidade do produto é que se chega ao preço final. Esta é a altura ideal para observar a vida de todos os dias e sentir o pulsar das localidades.
No final do terceiro dia, percebi que quando um marroquino, mesmo que seja uma criança, se aproxima de um estrangeiro, não o faz desinteressadamente. O intuito é sempre ganhar algum dinheiro. Se não pedir dinheiro, é porque não é marroquino!
Dia 4
Dia de travessia no deserto! Depois de subir o Atlas, a paisagem muda radicalmente! Não há nada à nossa volta. Só areia e mais areia. De muitos em muitos quilómetros percorridos surgiam algumas aldeias que se confundem com a paisagem por serem construídas em barro. Os seus habitantes parecem sedentos de oferendas. Uma simples caneta levada na mochila foi motivo de festa. Uma bola deixa em êxtase um grupo de crianças que aparece do nada e olhava como se nunca tivesse visto ninguém. Parei numa aldeia que se levanta de um chão arenoso como se algum deus tivesse adormecido naquela imensidão de nada. Parei para repousar e beber água, um líquido precioso nestas bandas. De repente, aparecem mulheres com vestidos totalmente pretos e outras com alguns bordados coloridos. Não lhes percebi a beleza por não mostrarem quase nada do rosto. Apesar de ter a máquina desligada e pendurada, em repouso, no pescoço assustei-me deveras quando salta um rapaz, não sei de onde, e grita: “No photo! No photo!”
O dia mais cansativo terminou de uma forma pouco convencional. Chego a Merzouga cansada e suja. Só queria um bom banho e um bom jantar, mas comida nestes sítios é um desafio para estômagos sensíveis. E o meu é o bastante para ficar uma noite inteira indisposta. As refeições são acompanhadas com azeitonas e pão deliciosos que os restaurantes normalmente não cobram. As batatas e o arroz são muito raros como acompanhamento. O jantar do meu descontentamento foi um dos pratos tradicionais - as “tajines”, uma espécie de guisado que tem um pouco de tudo, mas que eu não consigo decifrar. É comida com pão e diretamente com as mãos. Não sei se já o disse antes, mas a higiene não abunda nestas terras. Valha-me o chá, muito chá que acompanha todas as refeições excessivamente condimentadas com especiarias variadas. E do néctar dos deuses, nem sinal! Como dizia, este prato soube-me mal assim que o comecei a comer. Ia pedir a tão portuguesa bifana, mas nem tentei.
A noite prometia…
Dia 5
Estou em Marraquexe, cidade que enfeitiça e arrebata qualquer visitante! A chamada cidade vermelha envolve-se numa atmosfera mágica e desconcertante. A sua praça não deixa ninguém indiferente. Por ali, passa uma torrente vigorosa de gentes, sons, cheiros, cores e sabores. O som dos instrumentos tradicionais ativa a audição, as cores garridas do vestuário e curtumes estimulam a visão, os odores intensos das especiarias espicaçam o olfato. Até o tato é despertado pelos atrevidos macacos, ou, para os corajosos, por uma cobra enrolada ao pescoço saída de um qualquer cesto de vime. Os seus encantadores procuram dinheiro com façanhas que me puseram a correr dali a sete pés. Como as medinas marroquinas funcionam como labirintos, os seus habitantes fazem-se de guias pelas ruas da cidade para ganhar trocados. Mas o que poderia ser um passeio, torna-se num pesadelo, de tão intensas e frequentes as abordagens. Há que saber dizer não, sob pena de não sair dali tão cedo. Portanto, é preciso pé ligeiro e capacidade de orientação, pois as placas que existem são confusas, com cores diferentes para trajetos diferentes.
Nestas zonas antigas das cidades - as medinas - não há sinais exteriores de riqueza. Por todos os lados por onde caminhei não vi fortunas e senti até uma certa miséria. No entanto, depois de palmilhados uns bons metros de caminhos, reparei que as paredes altas e envelhecidas das habitações escondem muitas vezes haveres interiores, como se veem nos palácios abertos ao público e nas casas tradicionais. Ao espreitar, curiosa, para dentro de uma, assusto-me com um sonoro “inshalla!”. Soou a agradecimento pela quantidade de ouro que guarnecia aquele espaço.
Aproxima-se a hora do regresso. Para trás, fica outro mundo e outras vidas. Comigo vêm impressões variadas e únicas como se ali estivesse o princípio e o fim de tudo.
Marrocos fica apenas a 13 km da Europa.