O Papa, Thérive e S. Pedro em diálogo
O Papa Leão XIV, André Thérive e São Pedro entram numa biblioteca. Podia ser o início de uma anedota – mas neste caso entram inspirados por um silêncio mais profundo, entrecortado apenas pelo rumor das páginas e do som longínquo do mundo exterior. O encontro simbólico é a nossa porta para um tema hoje, e desde sempre, tão necessário – o diálogo.


João Valério
09 de julho de 2025
O Papa Leão XIV, André Thérive e São Pedro entram numa biblioteca. Podia ser o início de uma anedota – mas neste caso entram inspirados por um silêncio mais profundo, entrecortado apenas pelo rumor das páginas e do som longínquo do mundo exterior. O encontro simbólico é a nossa porta para um tema hoje, e desde sempre, tão necessário – o diálogo.
Começamos com São Pedro, recordando uma alusão recente de D. Alexandre Palma que entrelaça dois pontos distantes numa sugestiva imagem, ao falar numa homilia sobre o relato da pesca milagrosa. Recuperando essa cena com dois milénios de existência, lança o desafio de pescarmos, hoje, deitando as redes à "sociedade líquida". Esta evocação indirecta do pensamento do filósofo Zygmunt Bauman convida-nos a intervir sobre as efémeras relações sociais e culturais que caracterizam a contemporaneidade. Lembra nos da responsabilidade que temos sobre a construção do mundo, apoiados mas não substituídos por Deus. Este universo líquido em que nos movemos, de contornos indefinidos, sem pontos fixos, vai resultando numa incapacidade de encontrar estabilidades, numa crescente desorientação da qual podemos encontrar inúmeros exemplos nas mais diversas áreas e contextos. São Pedro, o apóstolo que outrora lançou as redes para o outro lado do barco no mar da Galileia, encontra-se agora a pescar em águas mais incógnitas, num mar de pessoas em busca de respostas, num mundo de certezas mais fugidias que os cardumes.
André Thérive parece encarar esta pesca e este mar com uma observação a que arriscamos chamar conselho: “o espírito de diálogo é apanágio dos civilizados”(1). Embora o tenha dito a propósito de questões de arquitectura, o facto é que, na sua essência, este assunto diz respeito a relações comunitárias que, de forma mais lata, moldam as sociedades. O diálogo, mais do que uma mera troca de ideias, é expressão de humanidade e da abertura ao outro. Só assim é possível a construção partilhada do pensamento. Nos tempos que correm, marcados por extremos, ouvir o conselho de Thérive coloca a tónica numa das poucas soluções que podem levar à paz e ao entendimento. É o contrário da leitura tribal, do fecho em grupos fortemente identitários, mas também por isso hostis e dogmáticos face à diferença. Thérive não mede o critério de civilização pelo avanço tecnológico ou pela riqueza; fá-lo pela capacidade muito superior de construir um raciocínio comum, em pontes de encontro e contacto.
O Papa Leão XIV entra na conversa seguindo esta mesma linha, já com algum trabalho feito apesar do papado ainda recente. No seu caminho próprio, vai-se tornando visível não só uma evidente dimensão social, já publicamente expressa, mas também uma vontade de reunir ovelhas que se encontram dispersas em muitos redis diferentes, reduzindo a polarização que a Igreja também vive. Na catequese de 14 de Junho de 2025(2), encontramos palavras que não podiam ser mais claras sobre este tema: “Ireneu [de Lyon], mestre de unidade, ensina-nos a não opor, mas a ligar. Não há inteligência onde se separa, mas onde se liga. Distinguir é útil, mas dividir nunca. Jesus é a vida eterna no meio de nós: Ele une os opostos, tornando possível a comunhão.”
Nesta reflexão conjunta sobre as responsabilidades que nos são lembradas pelo Papa Leão XIV, por Thérive e por São Pedro, são suscitadas questões fundamentais para a actualidade. Pilatos aparece à porta e pergunta, de relance: “O que é a verdade?”(3). O horizonte fluido convida-nos a embarcar numa navegação flexível, que se adapte às correntes incertas do nosso tempo e permita pescas fecundas, dando pontos de referência, chamando de volta ao diálogo e reunindo extremos dispersos. Neste Verão, possa o horizonte do oceano ou dos rios lembrar-nos com mais insistência este trabalho de reencontro a que somos chamados em Ano Jubilar, de uma habitação mais profunda da esperança que nos é dada.
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Fotografia de capa do artigo de Frank Mckenna
(1) "L'esprit de conversation est l'apanage des civilisés" (Atelier 5.1976 – 1992 (a+u Special Issue), 22)
(2) Audiência Jubilar - Catequese do Papa Leão XIV - Basílica de São Pedro - Sábado, 14 de junho de 2025 - https://www.vatican.va/content/leo-xiv/pt/audiences/2025/documents/20250614-udienza-giubilare.html
(3) Jo 18,38