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O Cristo de Richier

O cristo de Richier é um cristo tortuoso de aparência sacrificial. Nesta escultura em bronze, o sacrifício de Jesus Cristo está condensado no que parece ser um ramo tosco, quase desfeito, como se ostentando a sua fundição pelo fogo.

O Cristo de Richier

Carolina Serrano

11 de janeiro de 2023

O padre francês Marie-Alain Couturier (1897-1954), conhecido como um dos principais precedentes na coragem de religar a arte moderna e a Igreja, acreditava que, independentemente das origens ou credos do artista, a arte deveria ter como único critério a beleza. Ao ter refletido os anos de 1800 até a 1950, constata, segundo “provas irrefutáveis”, que as únicas obras que perduraram foram aquelas cuja beleza foi a consideração primeira, embora seguro de que esta não tem contornos fáceis nem unânimes.
Couturier comissariou várias obras de artistas modernos para o espaço eclesial. Trouxe à vida vários projectos corajosos e foi aclamado por ter levado “arte viva” à igreja moderna.

Um desses projectos foi a capela do Rosário em Vence, em França, cujo interior foi desenhado por Henri Matisse (1869-1954), a pedido da irmã dominicana Jacques-Marie, que, apesar de amiga de Couturier, não proferiu o mesmo entusiasmo que ele na sua primeira visita à igreja, depois de pronta. Receou que esta não fosse aceite, que o seu ‘modernismo’ repelisse aqueles que poderiam sentir-se desconfortáveis com a novidade. Alguma falta de aceitação dos moradores de Vence foi, porém, esmorecendo com o tempo.
Outro projecto, e um dos mais emblemáticos desta proximidade entre grandes artistas modernos e o espaço eclesiástico é a igreja de Notre Dame de Tout Grâce du Plateau d’Assy. Foi mandada construir pela vontade do clérigo Jean Devémy que, através de Couturier, contacta vários artistas para realizarem o interior da igreja.

Jean Devémy acreditava que ao apelar à vitalidade da arte profana poder-se-ia reanimar a arte cristã, já demasiadamente marcada pelo estilo “saint-sulpice”. O exterior é deixado nas mãos do arquitecto Maurice Novarina e o interior ganha ânimo albergando obras de artistas como George Braque, Henri Matisse, Pierre Bonnard, Georges Rouault, Fernand Léger, Marc Chagall, Jacques Lipchitz, entre outros. A igreja é inaugurada a quatro de Agosto de 1950 e, aquando da sua inauguração, suscita alguma polémica.
A obra que feriu mais suscetibilidades foi o crucifixo da escultora francesa Germaine Richier (1902-1959), “Christ d’ Assy” (1950), colocado no altar-mor. Os protestos mais veementes não vieram, contudo, dos membros da congregação, mas dos moradores da cidade de Assy que, relutantemente conformados com os vitrais de Rouault, com a grande tapeçaria de Lurçat, com o mosaico de Léger e com o desenho de Matisse, recusaram-se a ceder para com a imagem do cristo crucificado. A obra foi vigorosamente criticada por ser um insulto aos padrões de beleza convencionais.

O cristo de Richier é um cristo tortuoso de aparência sacrificial. Nesta escultura em bronze, o sacrifício de Jesus Cristo está condensado no que parece ser um ramo tosco, quase desfeito, como se ostentando a sua fundição pelo fogo. Os contornos desse corpo sem rosto confundem-se com a configuração da cruz onde está pregado – os braços humanos transformam-se nos braços da cruz. É como se o sofrimento da Paixão fosse transportado para dentro da carne, carne que se revela aqui e se mostra precisamente por aquilo que é. O rosto, ou a falta dele, conferem-lhe um anonimato inquietante, que não dá espaço para nenhuma reconhecença.

Este crucifixo foi considerado um atrevimento escandaloso e anticristão, um epítome da vulgaridade da arte moderna e um assalto profano ao carácter imaculado da arte sacra.

De facto, a escultura de Richier desafiou as imagens sentimentais comuns do que se achava ser o rosto de Cristo: a beleza imediata, o “kitsch”, como enunciado por Hermann Broch (1886-1951). Desafiou, portanto, a domiciliada confusão e o desacerto entre as categorias éticas e as estéticas, entre o ‘bonito’ ao invés do ‘bom’. O criador de kitsch, seria então aquele que usa de influências dogmáticas do passado, não retirando a sua realidade directamente do mundo, mas usando vocabulários pré-feitos e simulando emoções não existentes. Segundo Broch, numa passagem extremamente mordaz, “o criador do kitsch não cria arte inferior, não é um incompetente ou um charlatão, ele não pode ser avaliado por padrões estéticos; pelo contrário, ele é eticamente depravado, é um mal radical criminoso disposto a fazer o mal” (1).

Ambas as imagens, a da escultura de Richier e o protótipo do rosto sentimental de Jesus Cristo, foram postas lado a lado num panfleto feito e distribuído por um grupo de católicos que frequentavam aquela igreja. Lá podia ler-se “Não se troça de Deus!”, a título de uma demanda para o afastamento e para a retirada do crucifixo da igreja. Como consequência deste protesto, o crucifixo foi movido do altar-mor, cinco meses depois de lá ter sido colocado, e, devido à influência de Couturier, somente deslocado para uma parte mais escondida da igreja. O crucifixo só volta ao altar em 1969, dezoito anos após sido retirado, e quatro anos após o encerramento do II Concílio Vaticano (2).

O grande feito de “Christ d’ Assy” (1950) foi que, talvez, com a manifestação da sua aparente fealdade e repulsa, ter posto em causa a beleza imediata enquanto veículo para o divino. Com isto vem desafiar a própria concepção de beleza e propor como válido o valor espiritual da fealdade e do disforme dentro da igreja, mas também fora dela. Germaine Richier despertou o repensar do rosto e do corpo de Deus incarnado, e todos os cânones e convenções a ele atribuídos. O Cristo de Richier pode constituir, não só um exemplo da emancipação do ‘belo’ mas um corte com aquilo que se ‘espera’ ver. Aquilo que é dado a ver de uma outra forma que não aquela que se espera foi, neste caso, mostrado, no espaço eclesiástico, através do próprio corpo do Salvador cristão, através da própria face (irreconhecível) do Deus incarnado, que, aqui, não é bonito, nem harmonioso, nem espectável, mas que, numa primeira vista, poderá prender um sopro nas nossas gargantas.

(1) [tradução livre] BROCH, Hermann - Geist and Zeitgeist: The Spirit in an Unspiritual Age. Counterpoint, 2003.
(2) O II Concílio Vaticano foi o vigésimo primeiro concílio ecuménico da Igreja Católica. Decorrido entre 1962 e 1965 em quatro sessões, onde foram discutidos vários temas a ela referentes, visando uma actualização e maior abertura da instituição à discussão de que papel poderia ter na sociedade actual. Foram convocados mais de dois mil prelados oriundos de todo o mundo.

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