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O almoço do trolha

É nesta tentativa de trazer a arte para a vida e levar a vida para a arte que se vem fazendo o casamento entre as palavras e a imagem, duas forças maiores que nos provocam, incitam e não nos deixam indiferentes.
As grandes pinturas da humanidade têm motivado em mim histórias e poemas libertadores e que, de certa forma, tornam um pouco mais sublime a existência.

O almoço do trolha

Maria da Luz Coelho

08 de janeiro de 2025

Estava um dia frio e nublado. Tinha acabado de chover e havia tal tristeza, tal melancolia que só de olhar apetecia sofrer. O céu estava baixo e o ar pesado, por todo o lado pairava um cheiro a terra molhada e cimento. Encharcados, famintos e cansados, os reles trabalhadores caíam prostrados como quem espera um maná.

De todos, há um que se destaca. Grande figura de enorme devoção! Não fala, apenas consente na triste vida a que está votado. De cara no chão, trabalha e age como quem não espera mais nada. Resignação! É o grito dos tristes, dos simples, do trolha.

Não aguentava mais. As vestes rotas e feias pesavam-lhe no corpo. Pobre espetro branco, já sem fé! De pés ao frio e ao relento (não tinha outro calçado a não ser estas sandálias velhas que lhe enregelavam os dedos), senta-se encostado a uns andaimes. Ao lado, coloca, com amor e uma alegria perturbante, um duro e frio assento que queria encher de pedras cristalinas. Ali, pousa a certeza da sua vida, o amor mais alto e um forte pedaço de si.

É o fim da manhã. Inspira-o um desejo quase carnal, um rosto oval, um olhar fogoso que traz quem o visita. Inspira-o e incomoda-o. Queria dar-lhe outra vida, outro sustento, mas ela sorri-lhe confundindo-lhe o espírito. Pobre mulher, que triste sina! Para ele comer, ela deita-se sem ceia. Todos os dias a mesma rotina. Todos os dias a mesma angústia calada, a voz abafada, um silêncio cortante que grita por clemência. Hoje, traz o xaile vermelho caído sobre o esqueleto, as roupas são velhas malhas que a pobreza tece, mas o corpo ainda tem brilho. Arranjou o cabelo como ele gosta. Vem bonita, cansada, de alma entregue à afeição. Tem a criança ao colo, indefesa, a única fortuna que não larga. E ele, com as mãos calosas, grosseiras, ajeitou-lhe o tijolo, único conforto que lhe pode dar. Ela não se importa, está feliz! O rosto exibe uma a lealdade que o enternece. No regaço, a criança agasalhada quase o alegra e lhe tolhe os movimentos. Não tem berço de ouro, nem terá sonhos. Fixa-os com um olhar langue, mas as peles terrosas e gretadas talvez o impeçam de lhes tocar.

Nos passeios em que o trolha trabalhava, corriam regos de água cheios de pontas de cigarros. No seu almoço vibra a crueldade de uma existência. O lodo escorrido dos caminhos cimentados lembra enxurradas, dilúvios, fins de vida. E ali ergueu uma espécie de troféu. Ali moldou a bênção de uma casa, criando assim a sua Sagrada Família.

Numa das mãos, cabia-lhe a comida. Não era muita, talvez as sobras do jantar. Ela não come, sacia-se só de olhar para ele, desejando que do céu caia, quem sabe, o seu milagre. Mostra-lhe o filho, destapa-lhe a cara na esperança de lhe alegrar a tarde. Deste alimento há muito para lhe dar, talvez assim aguente as duras horas que o esperam. Ao ar, à chuva, de pás pesadas nas mãos sofridas, este é o único momento que queria ver durar.

De olhos postos nela e no menino, engole umas colheres de sopa sem cessar. É pouca, é boa, é o que resta de uma vida de trolha que quase nada tem que desejar.

Não sobeja muito a este quadro e a este almoço. Não dará, sequer, para pensar no futuro. Sabe o trolha e a mulher que o alimenta que amanhã não será outro dia. Para eles, amanhã é o mesmo dia, o mesmo quadro, a mesma vida.

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