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O «último avô» de Afonso Reis Cabral

O Último avô começa precisa e exatamente quando o escritor queima no seu quintal o manuscrito em que trabalhara durante anos, pelo que todos admitem que poderia ter sido o aguardado livro sobre a sua experiência traumática na guerra colonial.

O «último avô» de Afonso Reis Cabral

Marília Lopes

26 de novembro de 2025

Afonso Reis Cabral referiu, numa entrevista, que foi sua intenção abordar o tema da guerra colonial a partir de uma história familiar, sendo a guerra uma sombra que pairava sobre a família Campelo, e que essa história familiar deveria ser narrada numa perspetiva intergeracional, onde se tornasse claro e manifesto como a experiência e a vivência de acontecimentos traumáticos, como foi o da guerra colonial, se ousariam repercutir nas gerações seguintes. Este seu propósito podemos confirmá-lo clara e decidamente no livro. Podemos apercebê-lo não só na geração do avô, o grande escritor nacional Augusto Campelo, por exemplo na relação distante e tirânica que tem com a esposa, mas principalmente com as filhas, em particular com a mais nova, e com o seu único neto, significativamente com o mesmo nome, Augusto Campelo. Neto, a quem caberá, não por acaso, narrar a história familiar. Herdeiro da memória dos Campelos, em especial do avô que sempre contara inúmeras, insólitas e inquietantes histórias alusivas à sua estada em África, mas que nunca as vertera em escrito. O reconhecido e insigne escritor fictício, Augusto Campelo, autor de obras celebradas, nunca escrevera sobre essa experiência em terras africanas pelo que todos, leitores, editores e amigos, aguardavam com imensa expectativa um livro do grande escritor sobre essas recordações inauditas e memórias pessoais.

O Último avô começa precisa e exatamente quando o escritor queima no seu quintal o manuscrito em que trabalhara durante anos, pelo que todos admitem que poderia ter sido o aguardado livro sobre a sua experiência traumática na guerra colonial.

No traçar de uma busca incessante e ininterrupta pelo verdadeiro avô, que uma semana depois de incinerar o manuscrito viria a morrer, e pela possível existência de um outro manuscrito oculto, vamos poder tomar conhecimento com duas marcantes figuras femininas: a avó, meiga e carinhosa, sofrida no seu relacionamento com o avô, e que provavelmente aprovaria que se revelasse a verdade. E, em particular, a mãe do neto, que ele mal viria a conhecer uma vez que morreu muito cedo, mas que se torna uma figura central, senão a razão da narrativa, sempre a aparecer nos mais variados, e também difíceis, momentos da narrativa demarcada pelo filho. De uma grande sensibilidade, a mãe, tratada por Formiga, fugira da casa de família, de um pai obsessivo, de um relacionamento doentio e embora venha a regressar com um filho, o neto, ela sucumbirá. A sua presença e silhueta, não deixará, todavia, de se fazer continuadamente sentir, quer no seu antigo quarto sempre trancado, quer em toda a narrativa.

Uma filha doente, uma esposa dilacerada e sem vida própria, ambas com muitos silêncios, e um neto inseguro, que se irá robustecer e reencontrar após a morte do avô, são algumas das personagens centrais, cuidadosa e argutamente modeladas e delineadas, ao longo da obra.

Reconstruir as memórias da família é o intento deste neto que, ao narrar na primeira pessoa, procura entender e desmistificar o mistério em torno do manuscrito, mas em especial, em torno do carácter desse avô que se dizia traumatizado pela experiência da guerra colonial. Apesar de augurar revelações não abonatórias do avô, o neto não desiste de investigar e quanto mais avança nas suas pesquisas sobre a misteriosa estada do avô em África, mais as incríveis histórias que o avô contava se revelam inconsistentes, incoerentes e se desvanecem, surgindo como uma criação, uma ficção, uma bem narrada e tecida mentira que o leva a escrever: “Quantas pessoas não são a ficção que fazemos delas, e quantas histórias não andam por aí à solta sem verdade excepto a própria, isto é, a verdade da ficção”. (p. 269)

Tecido numa arquitetura intricada e complexa que o leitor irá acompanhar, de surpresa em surpresa, ao ritmo criado pelos laivos da memória e pela narrativa, deixando, muitas vezes, o leitor a induzir, a adivinhar o desenrolar dos acontecimentos e a tentar prever e antecipar atitudes e comportamentos, num permanente desdobrar de imprevistos que seguram e agarram o leitor ao texto e a não querer parar até granjear a revelação final.

Nos passos dos dramas e flagelos da família Campelo, Reis Cabral teceu uma inovadora e inédita abordagem sobre a guerra colonial, procurando encorpar os trabalhos literários sobre este tabu, ainda pouco abordado. Sem a necessidade de invocar um cenário de guerra, o leitor poderá magistralmente compreender as dores, os sofrimentos, as mágoas e as ciladas de um campo de guerra que, silenciosa, tacita e inesperadamente, se disseminam e irradiam além-fronteiras e além gerações.

O Último avô não é apenas um excelente livro sobre a guerra colonial, não é apenas um testemunho extraordinário de relações humanas e familiares sacudidas por acontecimentos traumáticos e difíceis, não é apenas uma bem tecida e conseguida história sobre o lugar e impacto das memórias. O Último avô é tudo isso e ainda mais um determinante apontamento e manifesto sobre as nossas narrativas, pessoais e coletivas, e como a ficção tem um enorme influxo sobre o nosso entendimento e discernimento sobre nós próprios e os outros. Ou como dizia Jerome Bruner, como construímos a realidade que vivemos pelas narrativas que contamos. Eis um livro a não perder. Um livro a ler e a deixar falar dentro de nós.

Mesa Redonda 
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