Notas e perguntas sobre a relação entre as Artes e a Medicina
Nos últimos anos assistimos à emergência de uma significativa corrente no seio da historiografia contemporânea que se tem debruçado sobre as questões da Medicina nas suas várias vertentes, desde a doença e a sua representação, à arquitetura típica das instituições hospitalares, passando pelo estudo das principais doenças e pandemias.
Ana Paula Rias
08 de fevereiro de 2023
É um facto indiscutível que a arte é uma fonte preciosa para a História e sempre ao longo da minha longa carreira a usei para iluminar a vida em sociedade em múltiplos aspetos, desde os mais óbvios – informações sobre arquitetura, organização social e política, ideologia – aos mais subtis como, por exemplo, as relações entre o pintor e aquilo que pinta.
Sempre tive bem presente a ideia de que a pintura não é a expressão da realidade. Quando pego no guache verde não quer dizer que queira pintar a relva ou quando escolho o azul não vou pintar o céu, dizia Matisse. Picasso recusava-se a explicar a sua pintura e poderíamos continuar indefinidamente a citar pintores que adotaram a mesma atitude.
Nas primeiras aulas de História da Arte, costumo desafiar os meus alunos com uma frase provocatória
OS GOSTOS TAMBÉM SE DISCUTEM
Eis o mote para a distinção entre uma avaliação objetiva e subjetiva da pintura e, se prefiro largamente esta última, não se pode ignorar a primeira. Senão não seria também possível que os médicos estudassem as obras de arte e pudesse avaliar das relações entre técnica, História e observação clínica.
Nos últimos anos assistimos à emergência de uma significativa corrente no seio da historiografia contemporânea que se tem debruçado sobre as questões da Medicina nas suas várias vertentes, desde a doença e a sua representação, à arquitetura típica das instituições hospitalares, passando pelo estudo das principais doenças e pandemias.
É uma área nova e muito promissora. Em Inglaterra há alguns anos que se vêm estabelecendo protocolos entre vários museus e instituições psiquiátricas, pois se conclui do efeito terapêutico que as visitas preparadas especificamente com esses fins poderiam ter. Não sei se entre nós existem experiências semelhantes.
Não há respostas fáceis, felizmente e por isso não podemos estabelecer correlações imediatas entre obras de arte e pintores com afeções clínicas. É tentador, mas nada nos autoriza com legitimidade científica a fazê-lo, exceto quando dispomos de documentação que ateste essas leituras. Casos há que são óbvios, Frida Khalo, para evocar um exemplo. Munch e o celebérrimo grito...
Em algumas circunstâncias se não fossem os problemas físicos, não teriam chegado até nós certas obras-primas. Refiro-me a Toulouse Lautrec cuja precoce doença o levou a percorrer um caminho distinto daquele que seria expectável atendendo às suas origens sociais.
Mas não é possível encontrar uma regra. Na mesma época, De Gas, originário de uma família aristocrática, dedicou-se à pintura.
Os autorretratos e retratos de Egon Schiele poderiam sugerir DISTONIA - leitura que seria reforçada por um retrato em que o jovem austríaco aparece numa posição distorcida - porém não existem elementos que possam validar essa interpretação.
Platão, no longínquo século 4 a.C., considerava que a loucura era uma bênção divina. Cito da minha edição do “Fedro”, em inglês: “Madness, provided it comes as the gift of heaven, is the channel by which we receive the greatest blessings ... Madness comes from God, whereas sober sense is merely human”.
Os românticos abraçaram esta ideia e a imagem típica que temos destes artistas é a de seres torturados, incompreendidos, de costas voltadas para a sociedade constituída por sujeitos “merely human” (como dizia Lord Byron).
Existirá de facto uma relação entre criatividade e doenças como esquizofrenia, bipolaridade, depressão?
Aqueles que padecem destas doenças têm uma organização diferente do cérebro?
Damásio tem feito notáveis incursões neste domínio mas a questão pode também ser colocada de outra maneira: será que não estamos a basear-nos nos artistas cujas vidas são necessariamente mais escrutinadas? E as pessoas ditas normais? Não desenvolverão outras ou as mesmas manifestações?
Os próprios artistas partilham da ideia de que as suas afeções são parte integrante e indissociável da sua obra e o testemunho de Munch atesta-o: “My troubles are part of me and my art. They are indistinguishable from me, and it treatment would distroy my art. I want to keep those sufferings.”
Existem inúmeros outros testemunhos que permitem perceber as doenças dos sujeitos retratados. O Pai da Psicanálise fez diagnósticos, muito questionados, de pintores famosos. Na sua conhecida obra, Uma recordação de infância de Leonardo Da Vinci, Freud conclui que o artista era homossexual.
Agora que as ligações entre a Medicina e a Arte são estreitas não restem quaisquer dúvidas, basta recordar que São Lucas é o patrono em simultâneo dos médicos e dos artistas. Há quem acrescente curandeiros e creio que não é numa aceção pejorativa. Os curandeiros ou curandeiras procuravam com plantas colhidas na natureza curar os males do corpo, os pintores procuraram mostrar-nos outros mundos ao nosso espírito. Uma virtuosa combinação.