No dia seguinte ninguém perdeu
A comunicação social levou-nos casa adentro figuras políticas e ideais sociais mais ou menos fundamentados. Mas levou, também, o incentivo ao erro e a desvalorização do idioma que deve enaltecer.
Maria da Luz Coelho
21 de fevereiro de 2024
No dia seguinte ninguém perdeu. Esta frase, de uma assertividade inquestionável, poderia ser o título de uma qualquer análise política ao fenómeno das eleições legislativas. Depois de um olhar atento pelas diferentes reações dos partidos políticos, a frase parece-me bem coerente, devendo-se, aqui, a referência a uma outra usada por Saramago nas Intermitências da Morte. De facto, ninguém perdeu e, à sua maneira, todos obtiveram confortáveis vitórias, que se apressam a justificar sob pena da ridicularização pública. Lamentavelmente, a única que perdeu qualidade e vi sair derrotada foi a língua portuguesa.
“A minha pátria é a língua portuguesa” - cita-se amiúde Fernando Pessoa como exaltação da identidade de um povo. Ora, mal vai o patriotismo e o amor à língua nos tempos atuais, principalmente quando nos entra pela casa uma assustadora falta de cuidado com a sintaxe, a ortografia e a acentuação das palavras. A comunicação social levou-nos casa adentro figuras políticas e ideais sociais mais ou menos fundamentados. Mas levou, também, o incentivo ao erro e a desvalorização do idioma que deve enaltecer.
Na fala ou na escrita, encontramos sistematicamente a possibilidade de realizar o famoso exercício da “caça ao erro”, o que me leva a concluir que houve um uso abusivo de um meio de transmissão de conhecimento, prestando-se um serviço de pouca qualidade.
Quanto a mim, desisto com facilidade quando vejo o “fato” que substitui o “facto”, ou um “derivado” em vez do “devido”. “À muito tempo” enerva solenemente quando se quer falar de um sinónimo de existir, ainda mais se for “à muito tempo atrás”. De facto, há imenso tempo que todos deviam conhecer o verbo “Haver”, para que não haja qualquer dúvida na sua utilização.
Recordando mais uma vez a campanha eleitoral que nos acompanhou nos últimos tempos, quem não se recorda do famoso “Se gasta-se menos”, ou da nota de rodapé que alertava para o dia em que “houveram” não sei quantos debates. Houve, e muitos! Se se gastasse mais tempo no cuidado com a língua, talvez o serviço prestado surtisse melhores resultados.
A língua, este fenómeno tão dinâmico e frágil, vê corrompida a sua essência e verdade, pois os que escrevem “saber-mos” e “trás consigo” não percebem que esta praga está em constante confronto com o que a escola quer fazer. Sabermos escrever na nossa língua materna traz vantagens para toda a cadeia comunicativa – quem emite, quem recebe a mensagem e a própria mensagem transmitida.
Sempre acreditei na importância de escrevermos corretamente a nossa língua e encontrar erros que me horrorizam faz perder a vontade de continuar a ler e a ouvir aberrações. Li, algures (citar a fonte não parece adequado), que a “prespetiva” do Senhor X “tem haver” com a doutrina que defende. Eu defendo uma perspetiva correta, com ou sem doutrina, que apenas tenha a ver com a correção linguística e o amor a um património que nos foi entregue e que muitos teimam em desacreditar. Piora um pouco quando acrescentam “espetativas” que “concerteza” querem ver cumpridas. A minha expectativa é, com toda a certeza, não voltar a encontrar atentados à língua materna que tanto respeito nos merece.
Assumo, perante todos, a minha grande dificuldade – não consigo ler textos com erros ortográficos publicados sem zelo profissional. Quem não mostra brio na preparação do seu texto, quem mostra indiferença pelo leitor, não merece que se perca tempo e ânimo com um mau português. Rever cuidadosamente os textos nunca é uma “perca” de tempo. A verdadeira perda está no erro constantemente cometido e vulgarizado - na concordância, na péssima pontuação, na má construção frásica, nas ideias extremamente confusas.
E já que estamos a falar de erros, “eles que” constituem matéria gritante de repúdio, resta explicar a incoerência da minha frase inicial. Em matéria de votos, ou há empate, ou no dia seguinte alguém perdeu. Mas que não seja a língua portuguesa a visada nesta disputa.
Fev. 2022