Natal dos Hospitais, um conto de Natal
Ela sabia que estar doente não era coisa boa, porém estar a viver um Natal dos Hospitais era bem melhor do que tinha quando estava doente, a única coisa que lhe faziam era canja de galinha e não ia à escola.
Cláudia Araújo Teixeira
11 de dezembro de 2024
Gostava do Natal da mesma forma que gostava das férias ou de fazer anos. Passava muito tempo a pensar e a imaginar o quão feliz seria nesses dois momentos especiais da sua vida. Nas férias, podia acordar sem horas, vestir roupa que cabia numa mão, mangas cavas, calções e chinelos, como se o corpo tivesse recebido uma carta de alforria e se se pudesse mostrar livremente. Os pais, eles também, ficavam mais tranquilos, libertos que ficavam da obrigação de os obrigar às tarefas escolares e recebiam subsídio de férias, o que dava para comprar gelados à saída da praia, onde tinham barraca alugada para o mês. Parecia que tinham todo o tempo do mundo, ainda que o tempo corresse mais depressa que a Rosa Mota em competição.
Para o dia de anos, planeava, fazia a lista de convidados, a avó faria o bolo decorado com as claras em castelo e bolinhas prateadas de açúcar, os bicos de pato com fiambre e o Tang em dose industriais. Os convites pensados ao pormenor, escritos em folhas rosa com cheiro e corações decalcados diriam, “Gostava de te convidar para a minha Festa de Anos, se puderes assinala com um X na opção certa”. As opções “sim” e “não” cada uma com o seu quadradinho feito com esmero com régua e esquadro. Acabaria o dia de anos a comer a massa de frango feita pela mãe e a soprar as velas recicladas da última festa de anos num bolo feito de iogurte e raspas de limão. Assim, as férias, tal como os anos, eram sempre melhores na sua imaginação. Nada disto a deixava triste, consciente que estava da sorte que tinha, apesar de nada acabar por correr como tinha planeado, será que não seria melhor do que poderia ter idealizado? Afinal, a massa de frango da mãe era a sua preferida, principalmente o pão encharcado com o molho de tomate que ficava no fim, e acabavam por comprar Sumol de ananás que como só ela e os irmãos bebiam, não precisavam de colorir a água da torneira com Tang para que rendesse para todos os convivas, aqueles que nunca viriam a ser.
E era assim com o Natal ou melhor com o Natal dos Hospitais, que era, para si, uma das melhores partes do Natal. Teve sempre alguma inveja da melhor amiga. Não era uma daquelas invejas de querer mal, que não queria, era a sua melhor amiga só queria tivesse o melhor, mas ela tinha muita a sorte, a sorte de ter algo que ela não tinha e bem que se esforçou para isso, com os seus ataques de bronquite asmática. A amiga tinha uma daquelas doenças difíceis de sarar, o que a mantinha refém de inúmeras batas brancas e longas temporadas no hospital. Lembrava-se de a ir visitar e até levar os cadernos com os apontamentos das aulas. Uma dessas temporadas no hospital coincidiu com o Natal e, sorte dela, o Natal dos Hospitais. Não sabia explicar porque gostava tanto do Natal dos Hospitais, talvez fosse pelas gargalhadas do pai, que ficava com as bochechas vermelhas de tanto rir, com as palhaçadas do Herman a fechar a gala, pelos olhos marejados da avó por ouvir a Lenita Gentil cantar ou por ver a mãe a dançar ao ritmo da banda do momento. Talvez fosse por isso, por ser sempre a memória de um dia feliz. Lembrava-se da chamada da amiga a dizer que no dia seguinte ia haver festa no hospital, que ninguém tinha sossego com a azáfama para a receção das estrelas da televisão que até se distraíam e parecia já não ouviam as sirenes das ambulâncias que não paravam de chegar. A amiga estava a viver o sonho dela, sonho de estar na televisão e em dia de festa. Ela sabia que estar doente não era coisa boa, porém estar a viver um Natal dos Hospitais era bem melhor do que tinha quando estava doente, a única coisa que lhe faziam era canja de galinha e não ia à escola. Desde que se lembrava de existir, tinha bronquite asmática, uma patologia que lhe parecia como aqueles pratos que nem eram nem carne, nem peixe, mas uma mistura de vegetais e massa do dia anterior. Algo que lhe fazia espécie e a impedia de estar em casas cheias, fechadas, ainda que mesmo ao relento, quando tinha uma crise, sentisse que nem todo o ar do mundo e do outro a pudesse salvar. Em dias de crise, tinha de ir ao hospital. Como não tinham carro, chamavam uma ambulância, cujo barulho da sirene alvoraçava a vizinhança, que fazia com que as luzes das casas se acendessem formando uma grinalda natalícia. A viagem para o hospital era curta em quilómetros, mas longa em comoção. Passava o tempo todo, em voz para dentro, a pedir, implorar mesmo, para que não morresse, certa de que estava que isso ia acontecer. Nunca aconteceu, nunca morreu, nunca, também, chegou a tempo do Natal dos Hospitais!