Mosaico de Pedra: A Arte de Ilda David
Ilda David, com sua sensibilidade única, utiliza a pedra como uma extensão do espírito do lugar, adequando-se formalmente ao ambiente e transmitindo uma mensagem de introspeção e contemplação.


Francisca Gigante
05 de fevereiro de 2025
O mosaico de pedra é um meio de criação de obras que dialogam profundamente com o espaço. Como técnica artística, remonta à Antiguidade. Foi utilizado desde os tempos romanos para decorar pisos e paredes. Contudo, foi na Idade Média que o mosaico se consolidou como meio primordial para a representação de temas religiosos, especialmente nas igrejas e basílicas. Nas cidades de Ravena e Veneza, a título de exemplo, esta técnica atingiu um enorme apogeu, com mosaicos a criar uma fusão entre arte e fé. Tornavam o divino tangível para os fiéis, comunicado através de imagens.
Ilda David, com sua sensibilidade única, utiliza a pedra como uma extensão do espírito do lugar, adequando-se formalmente ao ambiente e transmitindo uma mensagem de introspeção e contemplação. As suas obras de arte são partes integradas do espaço em que estão inseridas, como acontece na Igreja Paroquial de São Tomás de Aquino, em Lisboa, onde o mosaico se torna uma linguagem visual.
Esta Igreja alberga algumas das mais notáveis obras de Ilda David. Entre elas, destacam-se os painéis de mosaico Rumor de Deus (2016), Fé e Caridade (2016) e Via Cruxis (2020), que são exemplos da combinação da técnica do mosaico com a espiritualidade e o espaço sagrado. Cada painel, trabalhado minuciosamente com diversas pedras, fala por si, convidando os observadores atentos a uma reflexão sobre os temas que abordam e ao pensamento reflexivo sobre a simbologia que encontram nas narrativas.
A última obra produzida por Ilda David na nave da Igreja de São Tomás de Aquino, Via Cruxis (2020), leva-nos numa viagem intensa pela dor e sofrimento de Cristo na sua paixão em 14 estações. A tonalidade quente das pequenas tesselas de diferentes cores, lembra a terra – Pois tu és pó, e ao pó voltarás (Génesis 3:19) – e reforça o caráter dramático da obra, capturando a transcendência do momento do sacrifício pela Humanidade, que estimula a uma transformação espiritual e pessoal. Uma a uma, a artista escolheu as pedras, cortou e colocou na obra. Sobrepôs milhares de pedras, de veios e cores diferentes, provenientes da China, Guatemala e Turquia, na própria pedra, trazendo uma nova dimensão à profundidade espacial desta obra. Reflete, portanto, sobre a comunidade diversa e questões de identidade e origens múltiplas.
Estas obras de arte de Ilda David destacam-se pela exploração da relação entre a forma e o pensamento, entre o que se vê e o que se sente. Cada peça parece desenhada para se tornar parte do espaço, mantendo uma relação simbiótica com o local onde se encontra. A escolha dos materiais e a técnica do mosaico não são acidentais, mas uma forma de interagir com a história e o espírito do lugar, permitindo que a arte se torne uma extensão da fé.
Ilda David iniciou o seu trabalho artístico com a pintura, tendo frequentado a Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa. No entanto, a sua prática estende-se também à gravura, ilustração e mosaico. A sua habilidade de transitar entre diferentes formas de expressão permite-lhe criar uma linguagem visual que vai além do convencional. As suas obras não são apenas expressões plásticas, são também uma forma de participação na narrativa coletiva.
O processo criativo de Ilda David inicia-se com esboços, pinturas e desenhos. A partir daí, as ideias ganham forma em grandes painéis, que podem ser apreciados
tanto individualmente quanto como parte integrante do espaço em que são inseridos. A partir das suas inspirações e referências, os títulos das obras surgem, refletindo não apenas o processo estético, mas também o pensamento que as guia. A sua capacidade de transitar entre a escrita e a imagem torna as suas obras uma ponte entre a palavra e a forma.
Ao convocar a participação ativa dos observadores, especialmente nas suas obras de maior dimensão, a artista escreve histórias em forma de painéis, criando uma documentação eclesiástica visual. O seu trabalho; melhor, esta sua linguagem pode ser vista como uma extensão do pensamento espiritual, como os mosaicos medievais eram usados nas igrejas para contar histórias sagradas e convidar à meditação. Recorda-me particularmente os mosaicos que incluem as cenas da vida de Cristo, figuras bíblicas e santos, na abside, ou abóbada da capela-mor, ou em cúpulas das Basílicas de São Vitale, Basílica de Sant’Apollonia in Classe, Basílica de San Apollinare Nuovo, em Ravena.
Um exemplo notável do seu trabalho em azulejo é o painel Navigatio Sancti Brendani Abbatis (1989), realizado para a EXPO 98 no Parque das Nações. Este painel foi inspirado no relato da Eneida, aludindo à tradição bíblica, a contos de aventura árabes e a mitos persas. Não tenho a certeza de que tenha sido, de facto, concebido para ser um espaço de peregrinação, no entanto, cria uma ligação entre arte e espiritualidade.
Ao longo do tempo, Ilda David tem realizado uma procura constante pela linha que liga o que se pensa ao que se vê e, finalmente, ao que é dado a ver. Essa relação íntima entre forma e pensamento é fundamental no seu trabalho, pois não apenas cria imagens, mas também questiona o papel da arte no pensamento do espectador que se pode emancipar, pensando, questionando, procurando respostas. A interação entre a palavra e a imagem é uma parte crucial do seu processo criativo, e o mosaico, sendo uma técnica altamente simbólica, oferece-lhe o suporte ideal para essa investigação.
Além da sua obra religiosa, Ilda David também é conhecida pela sua contribuição em projetos de ilustração, como as capas para livros, como Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco (Sistema Solar, 2012) ou a edição da Bíblia proposta por José Tolentino de Mendonça, com tradução de João Ferreira de Almeida (Assírio & Alvim, 2006) e Lineamenta (2018), na Biblioteca da Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa.
A arte de Ilda David, especialmente no campo do mosaico, é um reflexo profundo da sua visão artística e espiritual. A escolha do mosaico de pedra, com as suas diversas cores e texturas, proporciona uma forma de articular o espaço e a fé de uma maneira única e contemporânea. Ilda David convida à introspeção e à reflexão, mantendo o diálogo entre a palavra e a imagem. Em cada painel, escreve histórias, convidando todos a participar na sua caminhada artístico-espiritual, que transcende o tempo e o espaço.
Legenda da Imagem:
Via Cruxis (2020), Ilda David. Igreja de São Tomás de Aquino. Créditos fotográficos: Rui Jorge Martins, SNP Cultura.
In https://www.snpcultura.org/via_cruxis_ilda_david.html.