Imagens de uma Igreja peregrina
Por fim reconhecemos a mesa da refeição terminada, só com os pratos pousados ao acaso, os talheres espalhados, os restos de comida. “O vestígio: A toalha suja, testemunha da desordem. Entre espaço e tempo. O palimpsesto.”
João Valério
20 de outubro de 2021
A partilha que hoje trago é o resultado de inquietações que me têm acompanhado nos últimos meses. Mais do que uma ideia assente, é um conjunto de perguntas; ajuda muito trazermos connosco perguntas em aberto, pois é nos momentos mais inesperados que descobrimos pequenas respostas (ou serão elas que nos descobrem?), desembaciando o vidro difuso que nos envolve. É quase um conjunto de recortes, guiados por um fil rouge nesta procura da identidade e de caminhos novos para a Igreja de hoje.
Escreveu-nos o Papa Francisco, logo no início do seu pontificado, que somos convidados a aceitar a saída do nosso sofá, do conforto, para alcançar “as periferias que precisam da luz do Evangelho”. (Evangelii Gaudium) O Papa Francisco sublinha que não importam apenas as periferias geográficas mas também os “novos âmbitos socioculturais”. São as portas abertas da Igreja que convidam a entrar, num movimento em oxímoro – de entrada para fora, de saída para dentro. Que periferias e novos âmbitos socioculturais temos então à nossa volta? Algumas periferias são certamente fora da Igreja – e também aí somos chamados; mas outras criam raízes dentro da própria Igreja e estão bem perto de nós. Existe em particular, parece-me, um risco na Igreja dos nossos dias, talvez subtil mas não por isso menos danoso. As imagens de Igreja multiplicam-se como espelhos de um caleidoscópio. Perde-se a noção do centro, divergem as ideias e os modos de pensar a fé, extremando-se opções e ideias em ambas as direcções. Cria-se um fosso dificilmente colmatável, até porque esta dissociação entre “nós” e os “outros” nas ideias propicia olhar para esses outros como se estivessem fora, em vez de vermos peregrinos que trilham um caminho similar ou quase paralelo, coincidente no fim que buscam. Não estamos certamente a falar de uma novidade extraordinária, se pensarmos que as lutas pela “verdade” do Cristianismo foram uma constante desde o início da sua existência. Mas a multiplicidade a que o nosso quotidiano nos impele – não só na fé mas em tantas outras áreas da vida – agrava aquilo que já naturalmente aconteceria; soma-se ainda a relativa frescura do Concílio Vaticano II, apesar dos quase 60 anos já decorridos, infelizmente tomado em muitos casos como ponto de ruptura e não de caminho comum.
De qualquer modo, não percamos a esperança nem nos aflijamos em demasia. Até os mais temíveis tiranos viram os seus intentos de minar a Igreja deitados por terra. Conta-se que Napoleão, após invadir e subjugar os Estados Papais, expôs ao cardeal Ercole Consalvi, secretário de estado do Papa Pio VII, o plano para exterminar a Igreja. Recebeu apenas como resposta “Não conseguirá, majestade. Nem nós próprios conseguimos fazê-lo”.
Pergunto-me, por outro lado, que imagens diversas podemos ter de Igreja e das igrejas. Será um lugar de encontro; lugar de ritual; lugar sagrado; ou mesmo até lugar de rotina? Que imagem tenho da igreja e em que sentidos isso afecta a minha experiência de fé? Este último ano e meio trouxe ainda mais questões e colocou-nos em situações muito diversas que nunca imaginámos. Ao recordar “La messe sur le monde” (Teilhard de Chardin, 1923) vem-me à ideia um paralelismo com a igreja online dos tempos pandémicos (uma igreja virtual ante litteram, bem entendido). Aí se descreve a magnífica Eucaristia celebrada no Deserto do Ordos: “Já que, uma vez mais, Senhor, agora (…) nas estepes da Ásia, não tenho pão, nem vinho, nem altar, elevo-me acima dos símbolos (…) e ofereço (…) no altar de toda a Terra, a obra e a dor do Mundo. O sol acaba de iluminar as franjas do Oriente. Uma vez mais (…) a superfície viva da Terra desperta”
Uma outra imagem que muito aprecio e que me parece igualmente útil para trazer a esta discussão de pensar sobre a Igreja e sobre as igrejas é o tríptico “The Dining Table”, de Sarah Wigglesworth, arquitecta britânica. De modo muito técnico (e em nada ligado à religião, trata-se de uma obra puramente arquitectónica) são representadas três mesas em planta – ou melhor, três momentos da mesma mesa. A primeira, ordeira e rigorosa, antes da refeição, legendada “Pôr a mesa: uma ordenação arquitectónica de lugar, estado e função. Um momento congelado de perfeição”. A seguir, a mesa enche-se de uma mancha de movimento, tudo muda de sítio, traços sobrepõem-se de modo caótico. Legenda: “A refeição: o uso começa a minar a aparente estabilidade da ordem arquitectónica. Vestígios de ocupação no tempo. O reconhecimento da desordem da vida.” Por fim, assistimos à mesa da refeição terminada, só com os pratos pousados ao acaso, os talheres espalhados, os restos de comida. Legenda “O vestígio: A toalha suja, testemunha da desordem. Entre espaço e tempo. O palimpsesto.”
Também na igreja nos reunimos em torno de uma mesa com estas três fases, ritualmente repetidas e vividas em cada Eucaristia. Reconhecer a imperfeição e desordem que alimentam o nosso encontro à volta da mesa será essencial para compreender o altar, a refeição viva que nos é oferecida como dom e a comunidade que formamos através dessa comunhão. Podemos ter igrejas portáteis e temporárias, igrejas domésticas, igrejas online. Até mesmo igrejas “normais”. Mas em todas elas nos podemos perguntar: o que lhes falta para serem lugar de todos?
Fotografia de capa do artigo: Missa em igreja itinerante “Kapellenwagen”, da organização Oostpriesterhulp / Eastern Priests Relief Organization, EPRO, Bélgica, 1951