Em equilíbrio
Sobre um pilar central, uma casa-barra parece desafiar as leis da gravidade. A instalação artística de Alex Schweder e Ward Shelley ('ReActor' house) propõe um espaço arquitectónico em que o equilíbrio resulta – além, evidentemente, da própria equidistância da estrutura ao pilar – da posição dos ocupantes de cada uma das partes. Sempre que um se move a uma distância diferente do outro face ao ponto central, a casa desequilibra-se e inclina. É uma casa, por isso, onde é imperativa a cooperação.


João Valério
09 de outubro de 2024
Sobre um pilar central, uma casa-barra parece desafiar as leis da gravidade. A instalação artística de Alex Schweder e Ward Shelley ('ReActor' house) propõe um espaço arquitectónico em que o equilíbrio resulta – além, evidentemente, da própria equidistância da estrutura ao pilar – da posição dos ocupantes de cada uma das partes. Sempre que um se move a uma distância diferente do outro face ao ponto central, a casa desequilibra-se e inclina. É uma casa, por isso, onde é imperativa a cooperação.
Propomos olhar para a Igreja a partir deste prisma – um espaço de polifonia de ideias: pontos de vista distintos, por vezes aparentemente opostos, agregados em torno de uma âncora central. Nesta casa-Igreja, os movimentos nem sempre ordenados fazem ocasionalmente abanar a estrutura, pondo em perigo as loiças dos armários, o mobiliário, ou mesmo a própria casa no seu conjunto.
Será, então, desejável uma uniformização de pensamento, tendendo para uma singularidade da vivência da Igreja? Como quem encolhe tanto a casa que ela fica apenas assente sobre o pilar central, sem partes suspensas nem desequilíbrios? Sabemos, por exemplo, que a existência de diversos ritos na igreja católica, fruto de contextos culturais variados, não provoca a fragmentação desse corpo uno da Igreja, permitindo realidades como as igrejas católicas orientais, cuja validade e relevância foi afirmada pelo Papa Leão XIII na encíclica “Orientalium dignitas” (1894) ou no Concílio Vaticano II com o documento “Orientalium Ecclesiarum” (1964). Todas estão em comunhão, apenas com modos diferentes de expressão.
Ao mesmo tempo, equilibrando a equação, o facto de existir um só Papa que age como referência no emaranhado cultural universal é um aspecto que dá solidez à Igreja enquanto instituição e enquanto comunidade humana. O facto de podermos reconhecer algo como familiar no outro extremo do mundo faz-nos sentir em casa numa igreja a milhares de quilómetros de distância. Sentir-se em casa e sentir a pertença a uma comunidade alargada é essencial para a vida da Igreja, seja perto ou longe.
Por outro lado, a Igreja é composta por pessoas com convicções sociais, políticas, económicas, que nem sempre podem ser arrumadas em gavetas ordenadas e acabam por diluir limites até se cruzarem com os domínios da fé, num diálogo nem sempre fácil. A experiência humana diz-nos que parece ser impossível a conciliação absoluta de ideias. Podemos rodear-nos de pessoas que pensem de maneira igual, mas nunca conseguiremos que todo o mundo esteja de acordo em tudo – para o bem, e para o mal. O que para um é condição essencial, para outro pode ser algo a rejeitar liminarmente, no extremo oposto.
No documento “Nostra Aetate” (1965), procurando a relação possível com o hinduísmo, budismo, islamismo e judaísmo, o Papa João XXIII sugere que foquemos a atenção nos pontos de união. De certo modo, vivendo a diversidade com um sentido de proximidade. A diversidade bem vivida tem a vantagem de criar comunidades mais ricas, mais atentas ao outro, menos vulneráveis às vagas dos tempos e ideias em constante mudança. Uma comunidade com uma única visão do mundo pode tornar-se monocórdica, fechada em si mesma, correndo o risco de, ao longo do tempo, desaparecer pela falta de manutenção das rodas dentadas que estão no seu interior; se tiver uma ágora onde colidem ideias diferentes, onde há discussão – e onde se saibam encontrar consensos – terá possivelmente maior riqueza de pensamento e uma resposta mais abrangente às diferentes realidades.
Um dos problemas com a questão mais geral que subjaz ao texto surge no momento de perceber qual o caminho a tomar. Perguntava Pilatos “Que é a verdade?” (Jo 18,38). A primeira resposta é fácil para nós: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida.” (Jo 14,6). Conjugando com os mandamentos essenciais “Amarás ao Senhor, teu Deus” e “Amarás ao teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22, 37-39), temos excelentes referências como base. O grande problema surge quando temos de dar uma segunda resposta: fazer algo com esta Verdade na vida quotidiana. E é aí que os caminhos divergem mais. Basta pensarmos que, grosso modo (e salvo algumas excepções), as grandes correntes políticas procuram à sua maneira o bem estar humano, a prosperidade, a segurança e a justa distribuição de recursos. Mas sabemos também que os meios que usam, os resultados alcançados na prática e as convicções são diferentes.
A Igreja, na parte que lhe toca, ao longo de séculos tem procurado pensar, escrever e identificar caminhos de luz naquilo que são os desafios próprios de cada tempo, na passagem da Palavra para a vida. O que não impede, ainda assim, e ainda hoje, tensões entre quem apela a uma firmeza imutável e inalterável da tradição, e quem procura respostas de adaptação ao mundo e ao tempo. A Igreja trabalha, por isso – olhando para a sua vertente mais terrena – questões religiosas e, simultaneamente, políticas, no sentido mais lato do termo.
“Ecclesia semper reformanda est” – Igreja sempre em renovação – uma ideia popularizada pelo teólogo protestante Karl Barth, expressa bem a perspectiva do ajuste constante, fruto do embate com as sociedades em permanente mutação e constante processo de reequilíbrio. As civilizações conhecem ciclos de crescimento e declínio, de mudança e adaptação. A mudança pode ser lenta ou rápida. Tendencialmente, as instituições – sendo a Igreja uma instituição de grande massa – são lentas e precisam de vencer a inércia para que algo seja mudado. Para complicar, cada pessoa tem também as suas velocidades. Algumas mudam conforme a hora do dia. Outras vão mudando ao longo dos anos. Outras consideram que não se justifica qualquer mudança.
A Igreja é certamente um espaço polifónico, com uma variedade que é, em primeiro lugar, inevitável; em segundo lugar, benéfica, se bem empregue. A Igreja é, ao mesmo tempo, um espaço que, apesar da variação, precisa de pontos de referência e marcos de estrada. A Igreja é, ainda, um espaço humano imperfeito, em busca da santidade.
Para concluir, retomamos uma imagem diferente da instalação artística com que começámos.
alex schweder + ward shelley's 'ReActor' house – foto: Richard Barnes
Na fotografia encontramos os dois artistas no mesmo lado da casa, inclinando-a perigosamente em direcção a quem está fora da casa.
Será necessário sacrificar alguma da loiça dos armários para conseguir pescar quem está fora da casa e gostaria de entrar? Será que existem outras maneiras de o fazer apenas rearrumando a casa, sem danos colaterais? Pode a cooperação entre ideias diferentes dar origem a uma ideia melhor?
Será que uma casa equilibrada e de boa saúde é uma casa em permanente desequilíbrio?
Fotografia de capa do artigo: alex schweder + ward shelley's 'ReActor' house