top of page

As cidades de Sofronia e Tecla

Era uma vez a cidade de Sofronia, nos confins de um império vasto, de limites desconhecidos. Uma cidade feita de duas metades.

As cidades de Sofronia e Tecla

João Valério

11 de outubro de 2023

Era uma vez a cidade de Sofronia, nos confins de um império vasto, de limites desconhecidos. Uma cidade feita de duas metades: numa está o carrossel, a montanha russa e a tenda do circo – é uma metade feita de panos, prumos e parafusos; na outra metade estão as casas, a escola, o banco, tudo feito em pedra e betão. Uma das metades é fixa. A outra, claro, é provisória. Conta-nos Marco Polo que, “todos os anos chega o dia em que os trabalhadores removem os frontões de mármore, retiram as paredes de pedra, os pilares de betão, desmontam o ministério, o monumento, as docas, a refinaria de petróleo, o hospital, carregam-nos em reboques”. E partem em itinerância, deixando a metade dos carrosséis a aguardar expectante pelo dia em que volte a caravana e regresse a vida.

A cidade é de Italo Calvino (Le città invisibili, 1972) mas podia ser a cidade que assentou em Lisboa no mês de Agosto. Uma meia cidade que julgamos provisória mas que, nos camiões da itinerância, esconde pilares de pedra e vigas de betão. Uma meia cidade que enche de vida as outras meias cidades em suspenso que vai encontrando pelo caminho.

Que JMJ vivemos nesses dias? A cidade desmontável talvez tivesse, afinal, um sentido de permanência maior do que contávamos. Talvez tenhamos descoberto nela uma densidade maior do que se previa. Podemos ficar à espera que volte, estacione os camiões e volte a colocar pedra sobre pedra nesse definitivo-provisório em que vivemos e nos devolva esta vitalidade que encheu o país. Ou será mais prudente continuar a seguir o rasto dessa metade, não a deixando fugir?

Bem vistas as coisas, nesta fase pós-JMJ a melhor ilustração da cidade que procuramos pode ser afinal outra, também de Calvino: a da cidade de Tecla. Uma cidade sempre em construção, entre andaimes, gruas e baldes, nunca concluída. Os seus habitantes temem que, concluindo o estaleiro, a cidade se comece a desmoronar – e “não apenas a cidade”. Por isso, a construção nunca termina, guiados por um projecto que apenas podem mostrar ao fim do dia. Termina o trabalho ao pôr do sol e cai a noite. “É uma noite estrelada. Eis o projecto.”

Mais do que trazer receitas concretas, estas duas cidades alargam a imaginação para nos questionar sobre o que pode ser feito depois de dias tão ricos e tão inspiradores. Temos a noite estrelada das palavras do Papa Francisco e das experiências que vivemos para continuarmos a obra deste estaleiro.

Fotografia de capa do artigo: Michael Najjar, The invisible city, 2004 [NIMk – Netherlands Media Art Institute - Wiki Loves Art / NL project - CC-BY-SA-2.0]

Mesa Redonda 
Missão onlife:
Cultura
Sociedade
Casa Comum
Missão
bottom of page