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Artistas expõem (n)o Myanmar

Não é por acaso que a aproximação de pessoas é uma das características fulcrais das práticas curatoriais deste século XXI. Envolver socialmente é quase um princípio fundamental ao pensar uma exposição. No fundo, estes artistas colocam o que acontece diariamente nas ruas do Myanmar em exposição. Para que não fiquemos indiferentes.

Artistas expõem (n)o Myanmar

Francisca Gigante

07 de abril de 2021

Vamos supor que os artistas no Myanmar inauguravam uma exposição de arte com pompa e circunstância nas ruas onde marcham todos os dias, junto a manifestantes pacíficos, em direção à democracia no país.

Desta forma, talvez assim já teríamos um certo cuidado na maneira como abordamos a questão política e social deste país e olharíamos com redobrada atenção para as obras de arte, que diariamente são apresentadas em manifestações através de folhas A4, cartazes ou faixas. Como sabemos, infelizmente, neste momento não é possível inaugurar uma exposição de arte, não como ato deviamente organizado, neste país. No entanto, estes artistas ganharam coragem e arranjaram estratégias para expor (n)o Myanmar.

A questão que impera é: Como se expõe um país que não se quer expor?

Recentemente, o Myanmar viveu um golpe militar perpetuado por forças armadas que derrubaram o governo democraticamente eleito, retomaram o poder, e prenderam altos funcionários, incluindo Aung San Suu Kyi e o presidente U Win Myint. Sem termos definidos pela última tentativa de democratização que tinha sido iniciada há dez anos, em 2011, a população viu-se de novo confrontada por militares nas ruas que, ao sentirem que a sua intervenção começava a escapar ao controlo, resolveram deixar de lado as ameaças e iniciaram uma saraivada de disparos. Tomaram conta da economia, do país e da sociedade, negando à população birmanesa o acesso aos direitos humanos básicos.

Nos últimos dias os protestos agravaram-se. Como resultado de confrontos entre a população e as forças militares, a violência e o caos têm marcado as ruas onde ecoam canhões de água, balas de borracha e munições, por um lado, e vigílias, orações e obras de arte em forma de cartazes, por outro. Os tiros continuam, mas os artistas não se rendem. Um coro de vozes que tem conseguido tornar-se mais elevado, profundo e inequívoco. Um coro de artistas que sonha com um lugar onde o direito humano fundamental inalienável, o direito à liberdade de expressão vigora.

No dia em que escrevo, 2 de abril, o número de mortes de quem protesta contra a ditadura militar no Myanmar ultrapassa as 500 vítimas, segundo dados das Nações Unidas. É uma situação extremamente grave, que tem levado também o mundo da arte a responder aos apelos humanitários e de solidariedade cultural de artistas e organizações do país, como é o caso do artista Aye Ko, do curador Khai Hori e espaços como Myanm/art e Association of Myanmar Contemporary Art.

Em cidades como Yangon ou Rangum, que têm florescido nas artes visuais e de performance apesar da censura e propaganda, encontram-se ateliês de artistas que se expressam através da sua arte e dezenas de galerias que realizam vendas dessas mesmas obras. Apesar do pouco acesso à informação e do isolamento da população, que já não acredita nas notícias falsas e distorcidas dos órgãos de comunicação que operam no país – também estes tomados pela força –, os artistas construíram redes fortes para expor no mundo digital o seu trabalho à vista de todos.

Utilizam maioritariamente linguagens visuais como a performance, a fotografia e o vídeo. A arte da performance associada à arte de protesto, o vídeo e a fotografia pela sua portabilidade, armazenados, escondidos e transportados com facilidade. Muitas destas obras de arte têm sido apagadas, removidas ou destruídas pouco tempo depois de terem sido apresentadas.

As fotografias de protestos no Myanmar, que os artistas encontram na Internet, ganham vida quando estes conseguem criar cópias digitais coloridas. Apelando a todas as partilhas das novas obras de arte online, declaram que “não é necessário crédito,” enviando links do Google Drive com versões de alta qualidade, para que manifestantes e apoiantes do movimento possam imprimi-las e trazê-las para as ruas.

Agora, as mesmas lojas onde imprimiam foram obrigadas a fechar, oficialmente ameaçadas pelos militares por produzirem materiais ofensivos ao regime. Os protestos nos cruzamentos centrais da cidade dissiparam-se, deslocando-se para a periferia. O que resta é efetivamente a arte, pintada com spray em edifícios municipais, esquinas escondidas, viadutos de difícil acesso, fachadas de pequenos negócios de rua ou em formato online em redes sociais como o Instagram e o Facebook (apesar dos recorrentes bloqueios na Internet).

Nas ruas, veem-se pedaços de papel com o rosto do general que lidera o golpe militar, Min Aung Hlaing, com um “X” na cara. Como forma de desrespeito, foram deitados na calçada para que as pessoas os pisem. Não são performances, mas se chamássemos a estes atos performance coletiva, então, talvez aí acorressem um sem fim de curiosos além-fronteiras a olhar com atenção.

De facto, a história de cada acontecimento ecoa e continua a repetir-se em vozes de artistas que não se permitem silenciar. Artistas que são ao mesmo tempo protestantes pacíficos e curadores. Há anos que utilizam mensagens políticas codificadas. Artistas que são responsáveis por selecionar as obras mais impactantes, por interpretar e traduzir palavras em língua inglesa para o mundo ocidental, por planear angariações de fundos para poderem adquirir materiais artísticos e realizar novas obras, por divulgar os trabalhos para que cheguem a um maior número de pessoas.

Não é por acaso que a aproximação de pessoas é uma das características fulcrais das práticas curatoriais deste século XXI. Envolver socialmente é quase um princípio fundamental ao pensar uma exposição. No fundo, estes artistas colocam o que acontece diariamente nas ruas do Myanmar em exposição. Para que não fiquemos indiferentes.

Os artistas expõem (n)o Myanmar, assumindo um papel central na sociedade em que vivem. Resolveram utilizar a sua arte para apelar, mais que nunca, a atos significativos de solidariedade de outros artistas e instituições. É, portanto, uma exposição da arte de protesto do movimento civil que, a par da literatura, poesia, música, tem uma tradição riquíssima na cultura do Myanmar.

Vivemos em tempos incertos de censura e restrição. Respiramos na certeza, porém, de que a reconstrução de liberdades individuais fundamentais e a proteção da justiça e da criatividade é possível, quando tudo o que resta é expor um país ao mundo através da arte.

Mesa Redonda 
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