Arquitectura, espaço sideral e fé
Vivemos numa imensidão praticamente desconhecida e para conseguirmos viver precisamos de encontrar pontos de referência no espaço que nos rodeia.
João Valério
25 de agosto de 2021
Olhamos para o céu inspirados pelas noites mais quentes de Verão e, se nos rodearmos das condições propícias, podemos conseguir ver centenas de pontos que marcam a abóbada celeste. Podemos depois fazer o exercício de olhar o céu não como o pedaço de estrelas que nos parecem tão próximas e familiares, já do hábito de as ter sobre a cabeça, mas, abstraindo-nos desta familiaridade, compreendermos que estamos na verdade a olhar directamente, qual telescópio aberto sobre o vazio cósmico, para um imenso espaço com milhões de anos-luz de extensão em todas as direcções do nosso olhar.
É uma sensação que talvez apenas seja comparável aos desertos do nosso imaginário, com as incríveis paisagens quentes de dunas e largos areais, ou de desertos brancos com planícies salinas a perder de vista. O mar acaba por também ter esse condão de despertar em nós o toque do infinito – quer em alto mar, quando todas as referências desaparecem e o horizonte se torna igual em todas as direcções, quer no limiar entre terra e mar onde essa sensação pode até ser mais acentuada pelo contraste, pela noção de estar a chegar ao limite do espaço conhecido.
Tal como acontece com estas paisagens, o espaço sideral é para nós algo de esmagador pela sua dimensão, complexidade e inacessibilidade. Mas, em paralelo, é também uma visão de grande beleza que experimentamos ao contemplar uma noite estrelada, ou que sentimos amplificada ao observar imagens de astronomia das curiosas formas de planetas, nebulosas e galáxias.
Douglas Adams, no seu livro “Restaurante no fim do Universo” retrata bem esta relação difícil que temos com o desconhecido dizendo que “existe uma teoria que diz que no momento em que o Homem compreender o Universo, este irá transformar-se em algo ainda mais estranho e inexplicável. Outra teoria diz que isso já aconteceu”.
A 14 de Fevereiro de 1990 a sonda espacial Voyager 1 preparava-se para sair do sistema solar – a 6 biliões de quilómetros no nosso planeta – quando, numa manobra potencialmente arriscada para os delicados instrumentos ópticos que carregava, virou a objectiva da câmara para o lado do Sol, de onde se afastava. Das imagens resultantes viria a sair a famosa fotografia “Pale Blue Dot”. É uma imagem quase totalmente a negro, com leves flutuações de cor, onde o foco mais interessante é um minúsculo ponto branco. É a Terra. Carl Sagan viria a escrever mais tarde: “conseguimos tirar a fotografia e, se repararmos bem, existe um pequeno ponto branco. É a nossa casa. Nesse ponto, existiram todos os seres humanos de todos os tempos. É o local de todas as alegrias e tristezas, religiões, ideologias e teorias económicas. Cada herói, cada criador e destruidor de civilizações, cada rei e cada camponês, cada inventor e cada explorador da nossa história, todos viveram ali – num pequeno grão de poeira suspenso num raio de luz.”
Vivemos numa imensidão praticamente desconhecida e para conseguirmos viver precisamos de encontrar pontos de referência no espaço que nos rodeia. É através destes pontos de referência que damos sentido ao local que habitamos. Aristóteles escreve em “Metafísica” que o primeiro incentivo para a Filosofia é o espanto pelo mundo. Não começamos por tentar encontrar o sentido da nossa existência; a busca do sentido da existência pode ser o nosso objectivo último, mas tudo começa pela interrogação maravilhada sobre o que nos rodeia, atribuindo-lhe sentido.
Num paralelismo com a arquitectura, o Homem terá começado a construir por precisar de dar um sentido, uma identidade, ao local onde vivia. Ao colocar uma pedra gigantesca ao alto podemos pensar que se procurava mais do que a demonstração de um gesto hercúleo. Cada menir representa uma tentativa de criar identidade na paisagem, num território em que domina a horizontalidade. É esta marcação de uma vertical que irá ajudar o Homem a reconhecer os grandes espaços pelas marcas que aí são colocadas. Podem também associar-se rituais de marcação do tempo em função dos ciclos astronómicos, cuja expressão maior se encontraria nos alinhamentos megalíticos, numa tentativa de explicação racional ou ritual dos fenómenos do universo que nos rodeia.
Um aspecto interessante de observar é o surgimento dos povoados fortificados conforme a sedentarização vai tomando lugar, sobretudo pelo facto de representarem a permanência da vida em comunidade, uma marcação da vida comunitária no solo. Muitos séculos mais tarde, são os castelos que assumem esta figura de representação da vida comunitária e, hoje em dia, encontramos nas cidades a marcação no território desta procura da identidade social de cada povo.
Retomando a ideia do espaço sideral, se é verdade que é algo que nos pode amedrontar pelo desconhecimento, também é verdade que é algo que nos fascina. De certa forma, sempre sentimos a necessidade de conhecer o cosmos e torná-lo um objecto familiar. Talvez as constelações tenham sido essa primeira tentativa de procurar no céu imagens que o tornassem mais compreensível. Ainda hoje o fazemos, embora de forma científica, dando nomes às estrelas, planetas, nebulosas. De certo modo, catalogando os elementos do cosmos como num manual de instruções em que tudo fica aparentemente sob controlo e com explicações.
A ideia de abóbada celeste remete-nos inevitavelmente, se observarmos com atenção essa expressão linguística, para uma metáfora arquitectónica que descreve algo de finito sobre as nossas cabeças, algo que aparentemente controlamos melhor.
O ser humano não se limitou à procura de um espaço pessoal, de um espaço próprio no universo. A nossa própria casa também é um elemento que dá identidade ao espaço em que vivemos. É um local distinto dos outros na cidade, no mundo, é um local que conhecemos e do qual nos apropriámos. Curiosamente na história da arte encontramos um outro pormenor digno de nota – nas igrejas, as casas da comunidade, pintaram-se muitas vezes os tectos com belas quadraturas que trazem o céu para junto de nós. Parece que temos esta necessidade e hábito recorrente ao longo da história da humanidade de colocar algo que é invisível num local que podemos controlar e que sabemos que existe, evitando a estranha sensação de lidarmos com algo que, necessariamente, em grande parte desconhecido.
Fica a sugestão de encontrar no céu estrelado deste Verão, no infinito que se nos abre diante dos olhos, uma oportunidade para reencontrar Deus e para relembrar que uma das grandes coisas belas nesta relação de fé é exactamente a certeza de que nunca viremos a saber tudo, permanecendo assim no deleite de saborear um mistério a revisitar ao longo de toda a vida.