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A graça de ser

Apesar de tantas inquietações, a bússola do poeta parece apontar-nos o Norte: mesmo que nos pareça irrealizável, temos de ter presente que podemos “ser”. Certamente, sermos diferentes daquilo de fomos.

A graça de ser

João Andrade Nunes

15 de fevereiro de 2023

O que te peço, Senhor,
é a graça de ser.

Não te peço mapas, peço-te caminhos,
o gosto dos trilhos recomeçados,
com suas surpresas.

Não te peço coisas para segurar,
mas que as minhas mãos vazias
se ergam para a vida.

Não te peço que pares o tempo,
mas que ensines os meus olhos
a ler o tempo oportuno.

Mesmo se não tenho nem posso,
entre palavras de cansaço,
sei que posso ser.
(In José Tolentino Mendonça, Rezar de olhos abertos, Lisboa: Quetzal, 2020, 41.)


Conheci este belíssimo poema de José Tolentino Mendonça pela mão de Alfredo Teixeira, compositor e antropólogo de quem, talvez, me possa dizer discípulo.

Foi no dia 24 de junho de 2022. Abri a minha caixa de e-mail e, com total enternecimento, vi que tinha acabado de ser dedicatário de uma obra musical, para coro e órgão, cujo texto havia dado o mote à sua composição.

É normal, por isso, que não apenas a obra musical mas também o poema tenham, em mim, um significado especial. Talvez, uma espécie de “casa de partida”, à qual retomo sempre que necessito de abrir o mapa para percorrer novos caminhos.

Ao escrever este texto, tenho em mente o próximo dia 22 de fevereiro, data com especial significado para os cristãos. Quarta-Feira de Cinzas, o dia em que relembramos a finitude da vida que se desenrola numa linha temporal sem ocaso.

Creio ser esta noção de brevidade, de fragilidade humana que, ano após ano, nos deve fazer recomeçar o caminho, mesmo que receosos das “suas surpresas”. Mas que caminho? Esta é, verdadeiramente, a pergunta que nos inquieta. Certamente, o caminho das “mãos vazias”; o caminho de “saber ler o tempo oportuno”. Mas como? Como deixar escorregar dentre os dedos, de forma consciente e determinada, tanto do que carregamos? Como saber “ler o tempo” quando é tanta a névoa que nos cerra o olhar?

Apesar de tantas inquietações, a bússola do poeta parece apontar-nos o Norte: mesmo que nos pareça irrealizável, temos de ter presente que podemos “ser”. Certamente, sermos diferentes daquilo de fomos. A condição errante do ser humano implicará que falhemos no caminho: uma, duas, três, muitas vezes. Mas lembremo-nos deste poema e não tenhamos medo pedir, pela enésima vez, a “graça de ser”.

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